NETmundial e o futuro da Governança da Internet

by Digital Rights LAC on maio 28, 2014

gobernanza de internet

O regime de Governança da Internet está passando por um momento de reavaliação e mudança. Sob a supervisão das Nações Unidas, várias reuniões serão realizadas em preparação para uma Cúpula Mundial da Sociedade da Informação (CMSI+10), acontecerá em 2015.

Por Marília Maciel

1.    Uma mudança geopolítica e o papel do Brasil

Paralelamente, o governo dos Estados Unidos anunciou a sua vontade de transferir a guarda das funções da Autoridade para Atribuição de Números da Internet IANA), sobretudo da sua supervisão unilateral sobre a raiz (um servidor que serve de base para  o funcionamento do Sistema de Nomes de Domínio) para a  comunidade multissetorial. No meio deste processo, o Encontro Multissetorial Global Sobre o Futuro da Governança da Internet (NETmundial), convocado pelo governo brasileiro, foi um marco importante.

O fato de um país em desenvolvimento ter assumido a liderança nestas discussões é um sintoma de uma mudança de equilíbrio entre atores governamentais. Os Estados Unidos perderam a sua superioridade moral depois das revelações de Snowden, criando um vácuo relativo de liderança. Desta forma, há condições  políticas para promover a redistribuição do poder no regime a favor dos países em desenvolvimento, e para tentar avançar questões que têm estado paralisadas. Estes pareciam ser os objetivos do governo brasileiro quando ele decidiu convocar o NETmundial.

A reunião também foi marcada pela evidente falta de coordenação entre os BRICS sobre temas relacionados à Internet. A Rússia criticou fortemente o NETmundial e não aceitou o documento final. A Índia foi mais comedida e afirmou que não poderia endossar o inteiro teor do documento, mas que este tinha muitos aspectos positivos. A reunião aconteceu no momento em que o Brasil estabeleceu um diálogo mais estreito com os países europeus, sobretudo com a Alemanha, sobre assuntos de Governança de Internet. O problema da espionagem em massa os uniu, mas a colaboração está sendo estendida  para áreas como a privacidade e a infraestrutura.

No debate institucional, o Brasil defendeu a necessidade de conciliar os argumentos multilaterais e multissetoriais. O país defendeu a criação de uma plataforma centralizada para discutir problemas de política pública, com a participação total de todos os interessados, entendendo que a “fragmentação dos espaços políticos, entre outros fatores, prejudica muito as chances de grupos com menos recursos se engajarem na governança global da Internet, porque eles não podem conseguem presentes em todos os lugares”. O Brasil não detalhou o tipo de arranjo que pretende, mas provavelmente seria necessária a cooperação de outros países em desenvolvimento, como a Índia, para dar apoio político às duas ideias. Isto coloca o Brasil em uma posição desafiadora, uma vez que ele precisa desenvolver uma ampla gama de alianças diplomáticas.

2.    Documento resultante do NETmundial

A agenda do NETmundial cobriu dois temas principais. O primeiro foi a identificação  de princípios universais relacionados à Internet. O segundo foi a identificação de um caminho para a evolução da arquitetura institucional do ecossistema da Governança da Internet. Este último tema engloba a governança de nomes de domínio e números IP e o processo de desenvolvimento de temas globais de política pública relacionadas à Internet.

Em termos concretos, alguns avanços importantes ocorreram no NETmundial. Os direitos humanos tiveram destaque: eles devem ser respeitados igualmente online e off-line e devem sustentar o desenvolvimento de todo o ecossistema. O direito à liberdade de expressão e associação e o direito ao desenvolvimento e o papel da Internet na sua promoção, por exemplo, foram incluídos.

A espionagem também foi um tema importante. O documento levou em consideração o problema de coleção e tratamento de dados, não só por governos mas também por atores do setor privado. Esta abordagem foi positiva, já que os documentos existentes parecem ser mais focados em atividades governamentais. Contudo, foi uma pena o princípio da proporcionalidade – amplamente debatido na doutrina internacional – não ter sido incluído como um limite às atividades relacionadas à espionagem.

O documento reconhece a importância da participação de todas as partes interessadas na discussão de problemas de cyber segurança e da cooperação internacional frente a temas como a jurisdição, a execução da lei, a cyber segurança e o cyber crime, devendo esta cooperação ser realizada de forma multissetorial. Este é um progresso formidável, se considerarmos que a maioria da interação nesta área tem sido intergovernamental.

A participação multissetorial – o envolvimento de governos, da sociedade civil, de empresas, da comunidade tecnológica e de acadêmicos – foi considerada uma base fundamental do regime da Governança da Internet. Também foi reconhecido que as respectivas funções e responsabilidades dos setores deveriam ser interpretadas de forma flexível, considerando o assunto específico em pauta. Ao fazer isto, o documento oferece uma interpretação mais atualizada dos papéis e responsabilidades presentes na Agenda de Túnis, que prevê participação limitada de atores não-governamentais no desenvolvimento de políticas, algo que não corresponde à a realidade do desenvolvimento da Internet. O documento do NETmundial reconhece que o tema das funções e responsabilidades dos atores ainda é um dos  que carece de mais compreensão. Outros temas a discutir são questões de jurisdição, o desenvolvimento de um marco de referência para avaliar a implementação dos princípios acima mencionados e a questão da neutralidade de rede.

Um modelo distribuído, descentralizado e multissetorial da Governança da Internet foi apoiado pela reunião. A maioria dos participantes parecia acreditar que não seria apropriado criar um órgão centralizado para lidar com os problemas da Internet, mas sim aproveitar as redes multissetoriais e melhorar seus mecanismos  de coordenação.

Grande ênfase foi dada à questão de aumentar a transparência, a prestação de contas e o caráter global das instituições. Isto também se aplica à Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números (ICANN), responsável pela gestão do sistema de nomes de domínio. Participantes esperam que o “processo de globalização da ICANN acelere e o processo de criação de uma organização realmente internacional e global que sirva o interesse público com mecanismos claramente implementáveis de responsabilização e transparência”.

3.    NETmundial: o processo

3.    NETmundial: o processo

A Declaração Multissetorial do NETmundial – o documento resultante da Reunião – foi elaborada de uma forma muito aberta e participativa, através de consultas sucessivas. O Comitê Multissetorial Executivo (EMC) foi o corpo responsável por avaliar mais de 180 contribuições apresentadas em uma plataforma online e por criar um esboço  do documento final com base nestas contribuições. Este esboço,  por sua vez, foi aberto a consulta pública online. Mais de 300 comentários foram feitos.

Os comentários recebidos online, as questões levantadas durante os dias de NETmundial e os comentários feitos por participantes à distância (hubs e participantes individuais do NETmundial) foram analisados pelo EMC para produzir o a proposta de documento final. Na última fase, esse documento   foi apresentado ao Comitê Multissetorial de Alto Nível (HLMC) para ser validado politicamente. Este momento específico foi uma das deficiências do processo. A responsabilidade principal do HLMC era  assegurar que a comunidade multissetorial internacional participasse de forma significativa no processo do NETmundial. Contudo, os valiosos recursos políticos deste comitê não foram explorados até muito próximo da reunião. O HLMC teve pouco contato com o processo de criação do texto do NETmundial e com as consultas que foram realizadas, mas o comitê recebeu, informalmente, a capacidade de vetar partes do texto antes sessão plenária final. Este foi o momento em que foram feitas algumas mudanças controversas, tais como o enfraquecimento do texto no que toca à separação entre  a política e os  aspectos meramente operacionais quando se busca um novo modelo para realizar as funções IANA, ou a inclusão de um texto da OECD sobre a limitação da responsabilidade de intermediários. Isto foi considerado uma influência indevida de alguns atores e seria um problema processual a ser melhorado no futuro.

Em uma nota positiva, todas as sessões de elaboração do texto do  NETmundial foram abertas à observadores, que podiam acompanhas as alterações feitas ao texto em tempo real. A transparência do processo de elaboração é um legado importante do NETmundial.

4.    Conclusão 

O NETmundial foi um evento inédito, cujo documento final foi criado de forma multissetorial. A reunião mostrou que é possível extrair resultados concretos de discussões multissetoriais: a metodologia do NETmundial pode ser melhorada e até replicada em outros processos multissetoriais globais, como o Fórum de Governança da Internet (IGF). Mesmo se o documento final foi o resultado de concessões (e portanto a sua linguagem certamente não irá agradar todos os atores),  ele apresenta passos positivos a serem tomados, tanto em termos principiológicos quanto em relação ao roteiro de evolução do ecossistema institucional de governança.

O documento será tão relevante quanto os atores decidirem torná-lo. Se as ideias contidas no documento forem boas e úteis, elas certamente serão levadas à frente para outros fóruns e reuniões futuras, servindo de ferramenta para influenciar o processo de revisão da CMSI. Politicamente, o NETmundial representa a existência de uma janela de oportunidade para promover uma redistribuição de poder saudável no regime de Governança da Internet que poderá pender a balança para o Sul Global.