A Polêmica das Biografias no Brasil

by Digital Rights LAC on novembro 22, 2013

Biografias CC (bixentro) BY 2 - E

Por Pedro Belchior

Dentre as grandes polêmicas que ocupam as páginas dos jornais brasileiros, atualmente encontra-se a antiga discussão nacional acerca da proibição ou autorização para publicação de biografias acerca de pessoas públicas. Paralelamente às audiências públicas agendadas para os próximos dias 21/11 e 22/11 pelo Supremo Tribunal Federal brasileiro, nosso Congresso Nacional organiza-se para votar projetos de lei igualmente relacionados ao tema.

A questão notoriamente superada nas mais maduras democracias mundiais arrasta-se ainda no ordenamento jurídico brasileiro e causa prejuízos inegáveis ao desenvolvimento e aproximação da própria história da nação.

Toda a disputa percebida no território pátrio origina-se na vigente redação dos Artigos 20 e 21 do Código Civil, segundo os quais:

Art. 20. Salvo se autorizadas, ou se necessárias à administração da justiça ou à manutenção da ordem pública, a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem de uma pessoa poderão ser proibidas, a seu requerimento e sem prejuízo da indenização que couber, se lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade, ou se se destinarem a fins comerciais.
Parágrafo único. Em se tratando de morto ou de ausente, são partes legítimas para requerer essa proteção o cônjuge, os ascendentes ou os descendentes.”

Art. 21. A vida privada da pessoa natural é inviolável, e o juiz, a requerimento do interessado, adotará as providências necessárias para impedir ou fazer cessar ato contrário a esta norma.”

Em verdade, embora confusos e mal redigidos, os textos dos referidos dispositivos legais não proíbem a criação de biografias de pessoas públicas. Entretanto, a interpretação historicamente conferida pelos Tribunais nacionais acabou por corromper o ordenamento jurídico e criar aberração inadmissível frente a alguns dos direitos constitucionais mais caros para uma sociedade democrática.

Nossos julgadores passaram a proferir decisões que provocam a geração da seguinte conjuntura prática no Brasil: uma biografia apenas será legitimamente escrita e publicada se houver a expressa autorização da pessoa ali retratada ou de seus representantes legais. E não é difícil entender as sequelas de tal interpretação após o decorrer dos anos. Pouquíssimas são as biografias publicadas no país e, quando o são, invariavelmente retratam o biografado como um ser detentor de qualidades e virtudes inúmeras.

Nesse contexto, consequências perversas são sentidas pela sociedade como um todo. Afinal, são brutalmente limitadas a liberdade de expressão, a liberdade de investigação científica e a liberdade de informação – tanto em relação ao direito de um indivíduo informar, quanto em relação ao direito da coletividade de ser informada –, sem se esquecer das restrições manifestas aos direitos de acesso à educação, à cultura e ao conhecimento.

De fato, é extremamente importante notar que o ordenamento jurídico brasileiro não admite a imposição de posicionamento abstrato de preferência a determinados direitos constitucionais, notadamente em virtude da já declarada unidade constitucional. Dessa forma, é legítimo – e indispensável – que os direitos à imagem, privacidade e intimidade possam prevalecer diante de ponderações em casos concretos. Igualmente, deve-se manter em mente que a censura em si não é um problema para o Direito e para a Democracia.

Entretanto, a institucionalização da censura prévia e da censura privada mostra-se inaceitável em qualquer circunstância. Inclusive, a censura, em regra, tende a ser extremamente prejudicial, devendo apenas ser aceita excepcionalmente, após apresentada justificativa irrefutável. Esse é, afinal, o arranjo intelectual atualmente predominante nos distintos tribunais constitucionais de nações que já enfrentaram a temática com a profundidade necessária.

Nesse mesmo sentido, nota-se que o problema é ainda mais denso do que muitos têm observado no Brasil e repercute de formas das mais diversas, em âmbitos dos mais diversos. Desde a segurança jurídica até a construção da história nacional. Desde as salas de aula até a internet.

Em razão disso, não se deve encarar a liberdade de expressão aqui como um fim em si mesmo. É, antes de tudo, um instrumento para permitir um desenvolvimento social legítimo.

Afinal, não se pode permitir absurdo maior do que a possibilidade de se reescrever a história nacional – seja ela política, econômica, social ou cultural – conforme interesses personalíssimos. O que se dizer da possibilidade de se escolher um único indivíduo para pesquisar, analisar e expor fatos públicos e notórios que constituíram o Brasil?

A todos deve ser concedido o amplo direito de investigação e publicação de suas conclusões e interpretações, fomentando-se a criação de terreno fértil para a germinação daquela “verdade” mais próxima possível da realidade. Afinal, apenas o embate entre teses, posicionamentos e descobertas permitirá o afastamento da seletividade da memória popular e a efetiva imposição da concretude dos fatos históricos.

Negar a observância não apenas da liberdade de expressão, mas igualmente das liberdades e dos direitos constitucionais acima referidos, corrobora o nocivo entendimento ainda presente no Brasil e sustenta obstáculos graves à atuação dentro e fora da internet.

Enfim, é diante desse contexto que – enquanto o Congresso Nacional encontra-se em tentativa de votar projetos de lei referentes às biografias – o Supremo Tribunal Federal brasileiro analisará a temática no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 4815 e conferirá decisão acerca de sua prevalência e da interpretação a ser conferida aos mencionados artigos do Código Civil brasileiro.

A questão move interesses vários e faz ressurgirem polêmicas nos mais distintos segmentos brasileiros – entre artistas e biógrafos, envolvem-se jornalistas, acadêmicos, políticos, dentre outros –, mas seu desfecho lógico parece ser óbvio. Espera-se que seja determinada a autorização, em regra, para publicação de obras biográficas sem a necessidade de consentimento dos retratados, sob a severa pena de se manter a restrição a todo um sistema democrático.

Pedro Belchior é Professor e Pesquisador do Centro de Tecnologia e Sociedade da FGV Direito Rio
pedro.belchior@fgv.br