O Direito ao Esquecimento e direitos humanos na América Latina e Caribe: imprecisões conceituais, imprecisões históricas

by Digital Rights LAC on abril 8, 2016

19711025_d9efa837b2_bEm Em agosto deste ano, a Cidade do México foi sede da 8ª reunião preparatória para o Fórum de Governança da Internet (LACIGF8). Lá, representantes de todos os setores envolvidos no tema vindos da América Latina e do Caribe se reuniram para trocar experiências e discutir os desafios para a construção de uma internet mais livre e de acesso universal. Na última década a região experimentou avanços incríveis, no entanto, problemas antigos como a concentração do acesso – que segue a concentração de renda – ou a qualidade das redes permanecem. Além disso, novas questões surgem, como os limites da ação do Estado no combate a crimes cibernéticos e as fronteiras entre a liberdade de expressão e o discurso de ódio.

Por Johnatan Razen Ferreira Guimarães, Diretor do Instituto BETA para Internet e Democracia – IBIDEM

Dentre as questões mais recentes relativas ao regime de direitos fundamentais dos cidadãos está a possibilidade de se exigir judicialmente o apagamento de certos registros referentes a um indivíduo. Essa pretensão de moldar juridicamente os processos de produção de memória na internet ganhou o apelido de Direito ao esquecimento. Um dos pontos de discussão em destaque no LACIGF8 foi a inadequação de se importar um conceito do direito europeu sem uma reflexão sobre o contexto latino-americano. Uma questão que ultrapassa o caso específico: diferentes regiões passaram por processos históricos distintos que moldaram o discurso e a compreensão sobre direitos fundamentais de maneira que tornam cada experiência única e irredutível a qualquer das outras. Essa noção pode causar estranhamento por pôr em dúvida os fundamentos do sistema de direitos humanos – e sua pretensão universalista – montado nos últimos 70 anos. No entanto, reconhecer a diferença pode ser a única forma de realizar concretamente as exigências de democratização da esfera pública que vieram lado a lado com o discurso universalista.

O Direito ao esquecimento é um conceito cunhado por um jornal espanhol a partir da decisão do Tribunal de Justiça da União Europeia relativo a desindexação de dados pessoais em mecanismos de busca na internet. Em primeiro lugar, é importante notar que o conceito guarda em si uma imprecisão prejudicial ao debate sobre privacidade, além de ser alienígena ao debate sobre Direitos Humanos na forma como ele é tradicionalmente realizado na América Latina. Na sessão dedicada ao tema, Verônica Ferrari, do Centro de Estudos para Liberdade de Expressão – CELE, da Argentina, destacou que o conceito é impreciso, pois o debate em tela não se refere a esquecimento, no sentido de destruição de informações. Tanto a discussão realizada no tribunal europeu, quando o tratamento despendido por legislações recentes pelo mundo, dão conta do direito a pedir pela desindexação de informações pessoais das ferramentas de busca, não o apagamento delas na fonte. É preciso partir desse grau de precisão para que a análise de pontos positivos e negativos da proposta seja feita nos termos corretos.

Certamente, a desindexação de links que levam a informações sobre um indivíduo afeta os fluxos normais pelos quais se produz algo como uma memória coletiva na internet. Grandes ferramentas de busca cumprem um papel importante na construção dessa memória, pois seus algoritmos de indexação de links invariavelmente direcionam o tráfego dos usuários de internet de modo que páginas em destaque ganham grande atenção, enquanto uma página não-indexada pode passar praticamente desapercebida. Porém, esse ‘praticamente’ faz toda a diferença do mundo, pois a desindexação não é sinônimo de esquecimento. Ocultar um resultado de buscadores pode gerar expectativas irrealizáveis e uma falsa sensação de segurança, na medida em que a informação sensível permanece disponível, apenas mais difícil de ser encontrada.

Por outro lado, uma segunda dimensão do problema da imprecisão conceitual é como a expressão direito ao esquecimento é dissonante em face dos termos nos quais o debate sobre direitos humanos tradicionalmente se realiza na América Latina. A região foi marcada por décadas de ditaduras na maioria de seus países e a história das violações cometidas por esses regimes ainda está sendo revelada e apenas pela pressão da sociedade civil. A luta pelo reconhecimento e reparação dos crimes de Estado moldou nas últimas décadas o campo dos direitos humanos nos países latino-americanos de forma que a noção de um direito social à verdade e à memória são afirmados como um dos principais eixos norteadores do debate. Nesse contexto, o termo direito ao esquecimento, além de não oferecer uma descrição precisa de seu conteúdo – e exatamente por causa disso – também encontra resistência entre a sociedade organizada e as instituições de proteção de direitos humanos na região, desenhadas em torno do debate sobre memória.

Para além dos problemas de nomenclatura, o direito ao esquecimento traz à tona a questão da distribuição de poderes na rede. As críticas oferecidas nas discussões realizadas no LACIGF8 apontaram para o problema da concentração de responsabilidades nas mãos das empresas controladoras de mecanismos de busca. O modelo assumido tanto por experiências legislativas quanto judiciais tende a responsabilizar os provedores de aplicações por quaisquer danos causados caso falhem em retirar de suas páginas links considerados ofensivos à privacidade dos usuários. Essa aproximação, muito parecida com o regime de notice and takedown próprio do direito autoral, pode gerar os chamados chilling effects, incentivando empresas a assumir uma postura demasiado rígida e tendente à censura.

Também preocupa a questão de que informações serão consideradas sensíveis e, portanto, passíveis de desindexação. Estão bem vivas em nossa memória coletiva as tentativas das instituições estatais e dos agentes políticos de censurar, de todas as formas, dados relevantes sobre a vida pública dos países da região. A democracia brasileira é muito jovem, assim como a da maioria dos países latino-americanos e caribenhos. Na verdade, nossa história é uma de autoritarismos com alguns soluços de democracia, e algo que aprendemos nas nossas experiências de autoritarismo é que o abuso do poder de um sistema político que se fecha em seus segredos é um risco sempre presente. Boa parte do trabalho de reestruturação do Estado nos últimos 30 anos vai no sentido de reduzir esse risco estabelecendo responsabilidade pelo abuso e mecanismos de controle. Qualquer proposta que tenha como objetivo reduzir o acesso a informações sobre os atores políticos mais próximos do aparato estatal vão na contramão dessa tendência, pois invertem a fórmula básica de um governo democrático em tempos de internet: aos Estados a transparência, aos cidadãos a privacidade.

Dessa forma, se queremos de fato fazer um debate qualificado sobre mecanismos jurídicos para proteger a dignidade e a privacidade das pessoas, devemos prezar pela acurácia dos termos, mas, acima de tudo, pela historicidade das concepções de direitos fundamentais que nos definem. Não se pode ignorar os processos de formação de nossas instituições e de nossas elites políticas sob o risco de aprofundar ainda mais o déficit democrático de nossas sociedades e a desconfiança popular que as jovens democracias latino-americanas e caribenhas experimentam hoje.

Imagem: my poor eraser, de maryam momeni (CC-BY-NC-ND 2.0)