Porquê a Auto Identificação Obrigatória Vai Contra a Liberdade de Informação

by Digital Rights LAC on abril 2, 2014

libertad info

Vamos assumir que você é cidadão de um país da América Latina que recentemente promulgou uma lei sobre liberdade de informação (LDI). Esta é uma situação provável, uma vez que somente três países latino-americanos ainda não implementaram alguma medida sobre LDI na última década (sendo estas a Costa Rica, a Venezuela e o Paraguai). Se a sua lei for boa (e a maioria é), ele deve te capacitar com o direito de solicitar e receber informação do governo sobre quase qualquer assunto, com algumas ressalvas compreensíveis. Se você estiver no Brasil, como eu, você pode solicitar esta informação por meio de mecanismos abertos, legíveis por máquinas. De acordo com um ranking que foi feito de LDI pelo Centro de Direito e Democracia, a legislação do Brasil está entre as quinze mais rigorosas do mundo.

De, Gregory Michener

Ameaça e Discriminação

Vamos imaginar também que você, cidadão, sabe que existe corrupção séria dentro do governo da sua cidade e quer fazer algo para mudar isso. O problema é que, quando você pedir, por meios legais, informação que pode ser usada para investigar estas autoridades, você é obrigado a providenciar seu número e CPF para estas autoridades (perigosas). Esta informação pode ameaçar a sua segurança pessoal, ou a da sua família. O que é que você faz? Você provavelmente nem sequer fará o pedido.

A necessidade de apresentar um nome e CPF verídico só é exigida por cinco das quatorze normas sobre LDI que existem na América Latina: as do Brasil, Equador, Nicarágua, Paraguai e do Peru. Destas leis, somente duas parecem estar funcionando minimamente, a brasileira e a peruana. Dada a dificuldade de implementar leis de LDI, porque criar mais obstáculos como a obrigatoriedade da auto identificação?

Vamos imaginar uma situação hipotética mais suave. A água que seu prédio recebe da cidade é suja. Você faz um pedido de LDI junto às autoridades locais responsáveis pela água e à agência reguladora destas. Os oficiais de informação destas agências recebem seu pedido e pesquisam seu nome, por curiosidade inocente ou não. Com base no seu perfil no Facebook, e no fato de que não há mais nada sobre você na internet, eles supõem que você é um “ninguém” e, portanto, respondem somente com a informação mais básica, incompleta, que requer o menor esforço por parte deles. Agora vamos imaginar que você é um jornalista de uma agência de notícias poderosa.  Após o recebimento da informação e uma pesquisa do seu nome, os oficiais da agência vão providenciar informações muito mais detalhadas por terem medo que a providência de informações menos detalhadas levaria você a fazer um apelo formal e fazer a agência ficar mal vista.

Que tipo de Direito Fundamental Requer a Auto Identificação?

Sempre que possível, os oficiais do governo não deveriam poder discriminar com base na identidade do cidadão, conforme acima ilustrado, nem deveriam ter a oportunidade de intimidar um cidadão. Por isso, a obrigação de apresentar a própria identidade para exercitar um direito fundamental – o direito à informação – vai contra as normas internacionais e as constituições nacionais. Na maioria dos países com leis mais apuradas, utilizar a sua própria identidade é opcional. Você pode providenciar um e-mail como mickeymouse@hotmail.com sem precisar de mais. Porque é que um CPF é necessário para exercer um direito fundamental? Esta exigência é o equivalente legal a ser obrigado a dar seu CPF antes de reunir um grupo de amigos em um espaço público ou a escrever um editorial para um jornal. Estes direitos – o direito de reunir e a liberdade de expressão – não querem CPF, então porque é o direito à informação é diferente?

A necessidade de eliminar a auto identificação obrigatória é enorme, especialmente na América Latina e em outras regiões em desenvolvimento. Administradores pouco profissionais, governos patrimoniais e administrações infiltradas por organizações criminais representam riscos sérios à praticidade dos direitos e liberdades de informação. É irônico que esta obrigação de auto identificação faz com que o governo que mais precisa de controle público – como aquele envolvido em atividades ilegais – tenha a menor probabilidade de ser desmascarado.

Pesquisas de Solicitantes e Táticas de Intimidação

Todas as afirmações aqui feitas, sobre a intimidação, as pesquisas feitas sobre solicitantes de informações, e as reações diferenciadas com base na identidade, advieram da minha experiência no Brasil e pesquisa internacional. No caso do Brasil, é verdade reconhecida que em muitos municípios; em particular nas periferias de grandes cidades – os governos estão associados a organizações paramilitares que realizam extorsões e estão envolvidas no tráfico de drogas. A situação em partes da Colômbia, Guatemala, Honduras e do México, entre outros países no hemisfério, é muito semelhante. Em conversa com à antiga Diretora da Aliança Regional para a Liberdade de Informação e de Expressão, Karina Banfi, tornou-se claro que a obrigatoriedade da auto identificação não é um problema isolado, este faz parte de um mecanismo de intimidação general que está impedindo o uso eficaz de leis pela região a fora.

Um membro de uma ONG Carioca me contou uma história triste. A organização estava realizando avaliações da transparência de um município na periferia do Rio de Janeiro, mas a iniciativa tinha uma falha fundamental: os cidadãos se recusaram a participar. Os cidadãos sabiam que a administração era corrupta e perigosa, e a necessidade de se identificarem os dissuadiu de participar na avaliação de transparência.

A LDI é frequentemente vista com hostilidade por administradores públicos, mesmo nas democracias mais avançadas. A relação antagônica entre servidores públicos e os solicitantes de informação é tão lamentável quanto é evidente – eu até escrevi um papel branco que analisava brevemente este problema, antes da lei brasileira de 2011 ser promulgada. Os meus alunos – muitos dos quais são administradores públicos – me disseram que a pesquisa de solicitantes é prática comum antes de processar pedidos de LDI. Eles também me disseram que, dependendo da identidade dos solicitantes, eles tentam sempre dar o mínimo possível de informação.

Muitos administradores públicos têm sentimentos negativos fortes sobre leis de LDI. Em alguns casos, esta negatividade parece ser o resultado de uma cultura em que o Estado operava de forma tirânica e agora supostamente trabalha a serviço de seus cidadãos. A obrigação de auto identificação sugere o seguinte: “se você vai questionar o Estado, então o Estado tem o direito de questionar você. Quem é você e qual é a sua reclamação?”.

No caso do Estado do Rio de Janeiro, este tipo de atitude “estatal” (em vez de ‘a favor do público’) é levada ao extremo. Não só o solicitante tem de se identificar, como ele(a) não pode enviar um pedido oficial eletronicamente. O solicitante tem de preencher um formulário e apresentar o seu pedido pessoalmente, depois ele(a) tem de assinar uma declaração que adverte contra o abuso de informação, sob pena de processo penal. Isto não é só burocracia irritante, é uma verdadeira ameaça. Se levado a um extremo, o abuso de qualquer informação – seja governamental ou não – pode sempre acarretar um processo penal no Brasil. Isto nos leva a questionar porque o Governo tem de advertir contra o acuso de informação quando esta só será utilizada para investigar o próprio Governo. Se o abuso de informação é uma preocupação generalizada, porque não fazer uma campanha pública de conscientização? Claramente, são só mecanismos de intimidação.

Contudo, esta intimidação não está limitada a procedimentos oficiais. Outro pesquisador – que foca mais em uma área especifica de política federal – ouviu de oficiais da sua área de pesquisa que ele poderia ter acesso aos lideres políticos desta, contanto que parasse de fazer pedidos de LDI. O antagonismo que os servidores públicos sentem para com os solicitantes talvez seja inevitável, mas não é inevitável que este antagonismo não seja direcionado e individualizado. A obrigação de auto identificação torna possível este antagonismo direcionado.

Conclusão

Pelo que eu sei, não há intenção de reformar ou eliminar essa auto identificação obrigatória do estatuto. Ironicamente, a lei do Panamá acabou de ser totalmente reformada em 2013 (até então estava entre as piores leis da América Latina, e hoje em dia já está entre as cinco melhores), mas a obrigação de auto identificação não foi retirada da lei. A chave para o funcionamento das leis LDI, e para a melhoria da prestação de contas do Governo, é criar nos cidadãos um hábito de questionar as políticas governamentais. Se as leis LDI intimidarem os cidadãos, nunca chegaremos a este ponto. O uso de leis LDI não só é essencial para fomentar a responsabilização do Governo, como também para pressionar governos a garantirem direitos de acesso ideais. Nenhuma lei nasce perfeita, e esforços para melhorar leis são essenciais sobretudo em regiões onde culturas políticas ainda não protegem liberdades políticas. Pelo menos não por enquanto.