Perfis privados em lugares públicos
by Digital Rights LAC on outubro 29, 2014
por Dennys Antonialli*, Francisco Brito Cruz** e Mariana Giorgetti Valente***
Imagine um mundo em que, quando você for parte de um processo, o juiz pode, antes de tomar sua decisão, avaliar o seu perfil nas redes sociais. Quem são seus amigos, quais são os lugares que você frequenta, suas fotos em festas, comentários em memes e páginas que você curtiu. Imagine que ele possa fazer isso sempre que quiser, já que isso poderia ajudá-lo a avaliar quem você é, se o que você está falando é verdade, e, com isso, tomar uma decisão mais informada sobre o seu caso.
Esse mundo não está distante. Recentemente, o juiz Marcus Vinícius Pereira Júnior, da comarca de Cruzeta (RN), negou o pedido de isenção das custas processuais (baseado numa alegação de pobreza) de uma cidadã, depois de procurar e analisar seu perfil no Facebook. Observando as suas fotos e postagens na rede social, ele concluiu que ela tinha perfeitas condições de arcar com os valores devidos à Justiça.
De acordo com a decisão, “ao divulgar a presença no ‘showzão de Jorge e Mateus com os friends’ na Vaquejada de Currais Novos” […] “bem como os momentos felizes, E CAROS, assistindo aos Jogos da Copa do Mundo FIFA 2014”, esta pessoa não estaria “preocupada com o sustento da família”. Ele ainda a condenou por litigância de má-fé – ou seja, aplicou uma multa pela realização deste pedido, já que a parte estaria tentando enganar o Judiciário.
À primeira vista, pode parecer que o juiz teve uma boa ideia. Conseguiu mais elementos e isso permitiu uma decisão mais “justa”. Mas há algumas razões para que essa prática seja entendida como inadmissível e indesejável.
A primeira delas é jurídica. É verdade que a lei autoriza o juiz a pedir, por iniciativa própria, que determinadas provas sejam produzidas (levantadas e trazidas ao processo), quando elas forem difíceis ou caras de serem realizadas de outra forma. Ele pode, seja porque uma parte pediu, seja porque considera importante (“de ofício”, portanto), ordenar que essas provas sejam produzidas, ou ainda produzi-las ele mesmo – inspecionando “pessoas ou coisas”, por exemplo.
Mas, nesses casos, o pedido sempre deverá seguir um procedimento formal, e que assegure às partes o direito de prestar esclarecimentos e fazer observações que considerem pertinentes (arts. 440 e 442 do Código de Processo Civil).
Isso garante que elas possam se manifestar sobre essas provas e oferecer a sua interpretação antes de o juiz formar sua convicção. Todos têm o direito de contextualizar e dar sua explicação aos juízes sobre fatos que surjam no decorrer de um processo. Estes direitos de dar a sua versão e poder rebater a versão da parte contrária chamam-se ampla defesa e contraditório.
A segunda razão tem a ver com o uso que fazemos das redes sociais. Todos sabemos que as pessoas costumam revelar apenas algumas de suas facetas em seus perfis. Ao escolher as fotos e os momentos que compartilhamos, muitas vezes ocultamos fraquezas ou dificuldades. Por vezes, queremos mostrar ser algo que não somos.
E não há problema nenhum nisso. O problema surge quando esses fragmentos da nossa vida passam a ser usados como se retratassem toda a realidade sobre ela. E o pior – sem que tenhamos sequer o direito de nos manifestar. Além disso, o que mais será que meu perfil pode revelar? E se o magistrado encontra um desafeto seu na minha lista de amigos? E se descobre ser contrário ao meu posicionamento político? E se me considera irresponsável, pelos grupos dos quais participo, ou lugares que frequento? Tudo isso pode criar um viés e influenciá-lo contra meu favor.
Mas isso já acontecia antes das redes sociais. A linguagem corporal durante uma audiência, o modo de falar ou até mesmo a forma de se vestir são exemplos de características subjetivas que podem acabar interferindo na decisão. A diferença é que, nesses casos, ainda tínhamos algum controle sobre o que seria observado pelo juiz. No caso das redes sociais, é como se ele tivesse acesso à vida do cidadão fora do processo, fora de seus olhos, fora do fórum.
Isso pode se tornar especialmente preocupante se essa prática acontecer de forma velada, isto é, se os magistrados, ao consultar os perfis das partes antes de formar sua convicção, não abrirem a possibilidade de que sejam esclarecidas – ou pelo menos questionadas – as inferências que realizou com base nessa análise.
Vale lembrar, entretanto, que a bisbilhotada judicial só se torna possível se todas as informações sobre nós estiverem públicas na rede, para que todos os usuários possam olhar. O padrão no Facebook, por exemplo, é que tudo em nosso perfil seja, a princípio, público. Isso quer dizer que, caso não mudemos as nossas configurações de privacidade, qualquer um poderá acessar nossas fotos, posts e lista de amigos. Restringir o acesso a essas informações apenas para nossos amigos ou para amigos de amigos pode ser uma forma de tentar se proteger de uma “visita oficial surpresa” ao nosso perfil.
Sabemos que as presenças virtuais são hoje uma fonte fácil de informação sobre as pessoas. Pipocam na mídia casos de empregados demitidos por revelar, na Internet, terem mentido sobre uma falta no trabalho. Empregadores que, em processos seletivos, analisam a postura do entrevistado pela forma como a pessoa interage ou pelos seus gostos, de acordo com seus perfis em redes sociais.
E quem nunca foi buscar saber mais, pela rede, sobre alguém que foi mencionado numa roda de conversa? Se, de um lado, as pessoas poderiam se preocupar mais com a sua privacidade e as empresas de Internet poderiam adotar configurações padrão que evitassem esse tipo de prática, de outro lado, o Judiciário também deveria cercar-se de cuidados ao fazer uso dessa facilidade em um procedimento de garantia de direitos por excelência. Nem sempre a curiosidade serve à justiça.
*Diretor Presidente do Internet Lab
** Diretor Vice-presidente do Internet Lab
*** Coordenadora de pesquisas do Internet Lab