Ler não é inconstitucional

by Digital Rights LAC on setembro 30, 2014

ciegos

Quem imaginaria que alguém entraria com uma ação contra uma lei que permite que uma pessoa cega altere o livro Cem anos de solidão para um formato acessível e, assim, o possa ler?

De Diego Caballero, Fundación Karisma*

Você consegue ler este texto e outros, sem a ajuda de nada nem ninguém? Se sim, quantos livros você lê em um ano? Você prefere as novelas ou os livros de ficção científica? Ao consultar textos, tanto por diversão ou para fins instrutivos ou acadêmicos, você tem liberdade para escolher, não é verdade? A não ser que se trate de uma pessoa com alguma deficiência visual, não é preciso muito para navegar a Internet autonomamente e consultar toda a informação que a rede oferece. Uma pessoa sem deficiência visual não enfrenta barreiras insuperáveis para poder acessar textos escritos (análogos ou digitais), mas as pessoas cegas ou com pouca visão sim.

Você sabe por que? Basicamente, uma pessoa sem deficiência visual tem liberdade para escolher as suas leituras e, em geral, qualquer informação. Liberdade!

Em finais de 2013, o Congresso da República da Colômbia expediu a Lei 1680 de 2013. Esta lei garantia o acesso autônomo e independente das pessoas cegas e com pouca visão à informação, à mídia, ao conhecimento e às TIC. O que significou um grande avanço no reconhecimento do exercício pleno dos direitos das pessoas com deficiência visual.

Como parte do programa ConverTIC e em virtude da lei, o Ministério de TIC conseguiu uma licença nacional que permite o download gratuito de um software leitor de tela (Jaws) e ampliador de texto (Magic) por qualquer cidadão com deficiência visual. A legislação também obriga as entidades públicas do país, e as particulares que exercem funções públicas, a instalar este software e garantir standards de acessibilidade nos seus sites. Por outro lado, o artigo 12 da lei estabelece uma garantia de direito autoral. Desta forma, as pessoas com deficiência visual podem alterar, para formato acessível da sua escolha, qualquer obra que não esteja previamente disponível em formato acessível, sem necessidade de pedir autorização aos autores e sem pagar por direitos autorais.

Até agora, as pessoas com deficiência também se deparavam com obstáculos jurídicos para transformar o formato das obras. A lei 23 de 1982 e a Decisão Andina 351 de 1993, que estabeleceram o regime jurídico sobre o direito autoral na Colômbia, não contemplam, nas suas disposições, nenhuma garantia que permita que as pessoas com deficiência visual passem as obras para um formato acessível (nem previa o empréstimo público por bibliotecas do país). Este panorama restritivo faz com que as práticas realizadas para tornar uma obra acessível constituam infrações ao direito autoral. Hoje, pelo menos para as pessoas com deficiência visual, o artigo proporciona uma espécie de solução perante esta limitação ao acesso à informação e ao conhecimento.

Então, quem imaginaria que alguém entraria com uma ação contra uma lei que permite que uma pessoa cega altere o livro Cem anos de solidão para um formato acessível e, assim, o possa ler? Bom, neste momento, perante a Corte Constitucional da Colômbia, foi ajuizada uma ação pela inconstitucionalidade da Lei 1680 de 2013 pedindo a sua inaplicabilidade total, ou seja, pedindo que “seja revogada”. Segundo a demanda, a Lei 1680 de 2013 viola a Constituição (e seus artigos 61, 152 e 158) em quatro aspectos principais. A Fundação Karisma, em conjunto com a Clínica Jurídica PAIIS, realizaram uma intervenção cidadã, pedindo à Corte que declarasse a extinção da totalidade da lei.

O primeiro pedido da ação argumentava pela violação do artigo 152 da Constituição, uma vez que a lei envolve o direito fundamental à igualdade (artigo 13 da Constituição) das pessoas cegas e com pouca visão, e por isso deveria ter forma de lei estatutária e não ordinária. Em nossa intervenção consideramos que não necessariamente todos os assuntos relacionados a direitos fundamentais devem ser objeto de leis estatutárias, como a jurisprudência anterior da Corte já assinalou. A Lei 1680, embora busque desenvolver o direito fundamental à igualdade, não recai sobre o núcleo essencial do direito, nem o regula de forma integral; mas sim, faz com que este direito se torne operacional e funcional para as pessoas cegas e com pouca visão, por isso não era necessário dar-lhe status de lei estatutária.

O segundo pedido alega que a garantia do direito autoral (artigo 12 da lei), por se tratar de um limite ou exceção a um direito fundamental, neste caso o direito moral de divulgação, deveria tramitar como uma lei estatutária. Como o artigo não teve dito trâmite, também infringe a Constituição (artigo 152). Frente a isto, manifestamos que a garantia contida na lei recai sobre o direito patrimonial e não sobre o direito moral. O último é o que tem sido considerado como cerne do direito autoral pela Corte. Como a exceção não afeta este aspecto, o artigo 12 também não precisa ter forma estatutária.

O terceiro pedido da ação alega que o artigo 12 da lei viola a Constituição (artigo 158) porque não está relacionado aos demais artigos da lei. Assinalou que este viola o “princípio de unidade da matéria”. Nesta visão, a finalidade da lei de “garantir o acesso às TIC para as pessoas cegas e com pouca visão” não está relacionada à restrição dos direitos autorais. Em relação a este argumento, defendemos que a garantia do direito autoral é uma forma de operacionalizar o direito à igualdade, estritamente relacionado à matéria da lei. Contrariamente ao que os demandantes pensam, a lei não se refere exclusivamente às TIC, mas também, de forma geral, ao acesso das pessoas cegas e com pouca visão à informação, ao conhecimento e à mídia (incluindo o setor análogo). Sem a exceção, a lei não teria nenhum efeito prático e não cumpriria o seu objetivo.

Finalmente, os demandantes alegam que a garantia, em favor das pessoas com deficiência visual, não reconhece o dever constitucional do Estado de proteger a propriedade intelectual (artigo 61) e não condiciona os usos permitidos das obras à autorização prévia por uma entidade do Estado. Isto leva ao uso irresponsável das obras e a que os titulares de direitos se tornem vitimas de abusos por terceiros. Por isso, apontamos que a proteção ao direito autoral não é absoluta, e até o sistema de direito autoral oferece mecanismos, como as exceções e limitações, que, embora imperfeitos, procuram encontrar o equilíbrio entre a proteção dos autores e titulares, e as garantias para o exercício de direitos fundamentais.

Mas, não bastando uma ação, no final de agosto de 2012 foi ajuizada uma segunda ação perante a Corte Constitucional, contra a Lei 1680, alegando também que as suas disposições violam a Constituição. Mês passado, esta mesma Corte comunicou uma decisão que protege os direitos fundamentais de uma família na Colômbia. Esperemos que o bom juízo se mantenha e que, nesta caso, se decida também pela proteção dos direitos fundamentais das pessoas com deficiência visual. Porque ler não é inconstitucional.

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*Diego Caballero, aluno de direito da Universidade de los Andes. Membro do grupo Direito, Internet e Sociedade da Fundação Karisma.

Tradução de Antonia Azambuja.