O acordo econômico TPP ameaça regionalmente os direitos humanos

by Digital Rights LAC on junho 7, 2013

aguila

A abordagem descompassada dos direitos autorais feita pelo acordo TPP pode impactar negativamente a liberdade de expressão e o acesso ao conhecimento e à cultura dentro dos países signatários e, possivelmente, também dentro dos países vizinhos.

 Por Francisco Vera, ONG Derechos Digitales.

“A maior área de livre comercio do mundo”. Assim tem sido descrito o que será o tratado multilateral de livre comercio “Trans Pacific Partnership Agreement” (TPP), que atualmente é negociado por 11 países da parte asiática do Oceano Pacífico (Canadá, Estados Unidos, México, Peru, Chile, Cingapura, Brunei, Vietnã, Austrália e Nova Zelândia, além do Japão, que manifestou sua vontade de integrar o referido grupo). Aumentam-se tanto a tônica otimista das posições oficiais quanto a pressa para fechar o acordo. No entanto, após a filtração do conteúdo do acordo e as – até agora – dezesseis rodadas de negociação, o entusiasmo parece injustificado.

Em detrimento do otimismo oficial dos governos envolvidos, o TPP tem o potencial de afetar gravemente alguns direitos fundamentais, tais como a liberdade de expressão e o acesso á informação e ao conhecimento, além de bloquear futuras tentativas de reforma a normas de propriedade intelectual sob a perspectiva do interesse público.

Ainda mais grave é o fato de essas consequências não se restringirem somente aos países que negociam o referido instrumento multilateral, uma vez que apresentam um impacto global, com especial ênfase nos países vizinhos àqueles que atualmente estão negociando o TPP. As normas contidas nesse acordo acabarão por substituir, de fato, os padrões internacionais em matéria de propriedade intelectual, que já são bastante elevados por causa de acordos como os ADPIC.

Esse é o caso da América Latina, onde México, Chile e Peru formam parte das negociações do TPP. Entre os efeitos negativos do acordo, encontram-se: a consagração de prazos mais elevados de proteção da propriedade intelectual, se comparados aos padrões internacionais; a imposição de medidas aduaneiras que possam afetar o tráfico de bens intelectuais em processo de transferência para outros países; o bloqueio das importações paralelas mediante um novo direito de importação; a imposição de sanções criminais aos danos às medidas tecnológicas de proteção; e o estabelecimento de um regime de remoção de conteúdos na Internet.

Em matéria de aumento dos prazos de propriedade intelectual, pode-se ter como exemplo as normas de direitos autorais. O padrão fixado na Convenção de Berna é de 50 anos após a morte do autor, o que já constitui um benefício duvidoso aos interesses públicos envolvidos, haja vista o estímulo inexistente à criação intelectual que representa (será que realmente 20 anos a mais de proteção depois de sua morte motivam um artista a criar mais e melhores obras?) Nesse contexto, o acordo TPP elevaria o prazo mencionado a 70 anos, a fim de impor o padrão estadunidense (promulgado mediante uma lei que acabou sendo conhecida popularmente como “lei Mickey Mouse”) ao resto dos países.

No que diz respeito às medidas aduaneiras, o acordo TPP também pode ter um impacto regional, pois elas afetam inclusive bens em trânsito e podem prejudicar países com padrões menos exigentes de propriedade intelectual ou com exceções aos direitos autorais que permitam certos usos. Por exemplo, essas medidas poderiam afetar bens que estivessem em trânsito até a Bolívia e que ingressassem no continente por um porto peruano, impedindo que o primeiro país citado importasse obras culturais cujo autor tenha falecido há 50 anos (porém sem que sua morte tenha completado 70 anos), o que levaria à aplicação da norma adotada pelo Peru acerca do tema.

A imposição de um novo direito de importação afetaria decisivamente as condições em que os diversos países acessam obras culturais. Dois casos:

(1) Atualmente, se uma biblioteca de um país deseja adquirir um libro e este lá não existe ou tem um preço excessivo, é possível negociar a importação do texto de outro país sem a necessidade de contar com uma autorização especial, uma vez que o direito de controlar a distribuição de um bem cultural se esgota na primeira vez que se vende o mesmo. No cenário do acordo TPP, essa biblioteca deveria conseguir uma autorização (em outras palavras, pagar) para poder importar o livro.

(2) Entre as inúmeras vantagens que oferece a Internet, está a de poder comprar e vender bens em escala global. Diversos serviços e empresas web hoje oferecem a possibilidade de revender objetos usados a outros compradores, criando um importante mercado de segunda mão. É, por exemplo, o caso do eBay ou do Mercado Livre. Impor um direito de importação ou negar o esgotamento internacional de direitos autorais como quer impor o TPP afetaria gravemente o mercado em tela e, como veremos a seguir, seguiria a tendência de dar o controle dos exemplares das obras a seus donos.

As normas de medidas tecnológicas de proteção, os textos filtrados e o que pode versar nos tratados de livre comercio, entre os Estados Unidos e outros países, mencionados anteriormente apontam até tentativas de sancionar de maneira estrita qualquer forma de sabotagem a essas medidas. Em outras palavras, desbloquear um celular para utilizá-lo com qualquer operadora, um DVD para assisti-lo em qualquer aparelho ou um e-book para lê-lo em um dispositivo diferente são práticas que serão sancionadas até criminalmente. Isso excede os padrões internacionais já fixados e insiste em conceder aos usuários direitos sobre as obras que eles mesmos adquirem.

Porém, há ainda mais detalhes. Um dos pontos mais polémicos é o estabelecimento de um sistema de remoção de conteúdos infratores da Internet. A priori, garantir aos provedores de serviço e conteúdo de Internet que eles não serão responsáveis por conteúdos os quais não disponibilizarem é uma boa ideia. No entanto, o sistema norte-americano, que responsabiliza os provedores apenas se os notifica de maneira particular (e hoje de maneira massiva e indiscriminada), afeta negativamente a liberdade de expressão ao dar incentivos que dizem respeito somente ao download de conteúdos.

Todas essas ameaças deixam claro que no TPP impera uma abordagem completamente descompassada dos direitos autorais, que considera somente os interesses das indústrias de conteúdo. A única proposta filtrada que aponta para uma maior abertura desses temas, efetuada pelos Estados Unidos no ano passado, foi fortemente criticada pelos especialistas de todo o mundo, por partir de uma norma conhecida como “regra dos três passos”, que permite exceções e limitações em circunstâncias demasiadamente específicas e poderiam acabar prejudicando o panorama referente à matéria.

Esse enfoque predominante no TPP tem um custo enorme, pois afetar-se-ão de maneira excessiva e desproporcional os direitos humanos como a liberdade de expressão e o acesso ao conhecimento e à cultura, além de constituir um entrave para o desenvolvimento dos países, visto que essas normas não favoreceriam em absoluto aos países que carecem de indústrias de conteúdo. Ademais, ao ser assinado por mais de 11 países, admitindo o ingresso posterior de novos países, o TPP acabaria substituindo foros internacionais como a OMC e a OMPI, nos quais atualmente se discutem temas de propriedade intelectual e desenvolvimento sob uma perspectiva mais balanceada.

Todas essas ameaças são coroadas por um processo de negociação que carece de transparência e de participação por parte dos cidadãos e dos especialistas. Um balanço final que não deixa espaço para o otimismo e que só reafirma a ideia de que o TPP é um tratado que acabará por afetar os direitos humanos de maneira global.

Francisco J. Vera Hott  es director de proyectos de ONG Derechos Digitales.
E-mail: francisco (at) derechosdigitales.org