Hackeando o patriarcado: a experiência do primeiro #femhack

by Digital Rights LAC on julho 14, 2015

lac junio sin fondo

Algumas semanas atrás começamos a planejar o femhack Nicarágua: realizamos uma chamada aberta para convidar mulheres de diversas origens para proporem palestras ou workshops. A chamada circulou em redes sociais e chegou a um grupo sobre programação, onde participavam principalmente homens. “Há mulheres programadoras?” “Eu me pergunto, eu nunca vi mulheres neste ramo”, “É algo que eu nunca vi, tampouco conheci muitas mulheres dóceis na computação” foram alguns dos comentários. Isso espanta alguém?

Por Gema Manzanares*

“A ciência e a tecnologia proporcionam novas fontes de poder e, portanto, precisamos de novas fontes de análise e ação política”
– Donna Haraway (1991)

Por que a incapacidade de ver e reconhecer as mulheres envolvidas em tecnologia, ciência e engenharia? Penso em várias razões: os programas educativos em que as meninas são socializadas para a ordem e que raramente têm a oportunidade de desmontar e remontar as coisas; invisibilidade das contribuições que as mulheres fizeram à tecnologia e à ciência ao longo da história; menosprezo das capacidades das mulheres; entre outras.

Porém é a idéia de tecnofobia feminina que mais me perturba. Quando se diz que as mulheres simplesmente têm “medo” de usar/criar tecnologia, o que está se fazendo é nos culpar e justificar um sistema de desvantagens sociais. É ignorar convenientemente que existem grandes lacunas no acesso, entre homens e mulheres, aos direitos básicos como a educação; e que o sistema delega às mulheres as responsabilidades de cuidados, de modo que elas tenham menos tempo e renda para perseguir seus próprios interesses. Apenas para ilustrar o meu ponto: de acordo com a Cepal, em 2013, duas em cada três pessoas sem acesso à Internet em todo o mundo eram mulheres.

E então temos as mulheres que estão nesses: mulheres que vivem na Internet, mulheres programadoras, desenvolvedoras, mulheres estudando engenharia, as mulheres que aprendem a consertar computadores e telefones celulares; e vemos que o caminho não é fácil. Em um contexto em que praticamente todas as nossas interações acontecem através de uma tela, as mulheres têm de lidar com trolls e stalkers, que as identificam como alvos para seus ataques só porque são mulheres.

Aposta ciberfeminista

Muito tem sido escrito sobre ciberfeminismo, mas ainda não o suficiente. O ciberfeminismo reconhece a tecnologia como um elemento-chave para as mudanças sociais das últimas décadas, e propõe a construção de sociedades mais justas e equitativas através da Internet. Como ciberfeministas reconhecemos que a tecnologia não é neutra: porque sempre é utilizada com base na subjetividade humana e no preconceito.

Identificamos a necessidade de promover o envolvimento de mais mulheres nas carreiras e empregos de engenharia, matemática, informática e ciência em geral; a necessidade de refazer os passos da história para resgatar a vida de mulheres que fizeram contribuições para esses campos; a necessidade de refletir sobre nossas próprias práticas, o conteúdo que estamos criando e compartilhando online; e a necessidade de re-significar os espaços e criar novas formas de relacionamento, novas linguagens, novas maneiras de criar conhecimento. Mas nós também identificamos sistemas de opressão diários que correspondem a uma lógica patriarcal, sobre o qual temos de estar informadas e tomar medidas para mitigar seu impacto em nossas vidas.

Muitas feministas estão utilizando novas tecnologias para a promoção e proteção dos direitos das mulheres, muitas mulheres estão se envolvendo em projetos de tecnologia: desenvolvendo empresas, escrevendo códigos, montando negócios virtuais, mantendo blogs sobre vários temas, realizando vlogs diários; a pergunta é: como vamos aproximar umas às outras?

#femhack

No final do ano passado, um grupo de interessadas em promover uma leitura feminista do uso da tecnologia concordou em trabalhar coletivamente em um evento global para aumentar a consciência de necessidade de espaços de reconhecimento mútuo e da criação coletiva para as mulheres e pessoas queer. Assim nasceu a ideia do #femhack.

A primeira coisa que deixamos claro foi a natureza diversificada e adaptável do #femhack. Nós não estávamos falando sobre um único evento que seguiria a mesma metodologia em todos os países: queríamos um evento que seria tão diverso como as mulheres que o estavam planejando, que tivesse sua própria agenda, o seu próprio conteúdo do trabalho, sua própria identidade em cada lugar. Algo em que todas concordarmos é que o femhack era um espaço seguro: livres de expressões de sexismo, racismo, homo/lesbo/transfobia e outras formas de violência e ódio contra qualquer participante. Além da promoção e utilização de práticas de segurança digital como parte do evento.

Na fase de planejamento recebemos a notícia do assassinato de Sabeen Munhad, uma mulher que, mesmo não fazendo parte do grupo de promotoras do femhack, trabalhou duro pelos direitos digitais, a mente por trás da primeira hackathon no Paquistão e um pilar de ativismo na região. E nos pareceu adequado honrar a sua memoria a nível global dedicando o femhack em seu nome e reservando tempo em cada país para compartilhar sobre sua vida e realizações com quem participou do evento.

Depois de muita deliberação e várias datas adiadas, concordou-se em 23 de maio como a data para a realização do evento de maneira simultânea. Cada uma em seu próprio país começou a organizar atividades e algumas colegas criaram um site para realizar uma convocatória pública e convidar mais mulheres/grupos de mulheres a participarem a nível global.

Aos poucos, começaram a aparecer pontos cor de rosa marcando os locais de atividades no mapa do site: México, Nicarágua, Colômbia, Argentina, Brasil, EUA, Canadá, Espanha, País Basco, França, Escócia, Alemanha, Sérvia, Áustria, Índia, Paquistão, Indonésia, Quênia e Austrália. A agenda do femhack foi preenchida com workshops, mesas redondas, hackelarres, fóruns, festivais, performances e vários outros métodos.

Estávamos em redes sociais, comunicando-nos por meio da hashtag #femhack: gravando as experiências, compartilhando ideias e recursos, passando a tocha de país para país. Atividades continuaram a ser registradas depois de 23 de maio: no sábado seguinte, 30 de maio, México e Colômbia continuaram com suas jornadas, e em 6 de Junho nos comoveu na Nicarágua.

Hackatona Feminista Nicarágua

Gostaria poder dar-lhes as estatísticas e os dados nacionais sobre a dinâmica mulheres-tecnologia na Nicarágua, mas não há dados oficiais ou não oficiais sobre o assunto, porque aqueles que têm a capacidade e os recursos para fazer esse tipo de pesquisa não estão interessados e aquelas que estão interessadas não têm a capacidade e os recursos.

Como mencionava no início, fizemos uma chamada para palestrantes e moderadoras. Queríamos saber, da própria voz das mulheres, como elas estão interagindo com a tecnologia: nós queríamos criar um espaço para aprender coletivamente. Recebemos 11 propostas, nove palestras e dois workshops sobre segurança digital, artivismo, identidades virtuais, ser blogueira, recursos para aprendizagem de programação em linha, e apresentação de projetos individuais e coletivos que surgem através da Internet.

A semana de 06 de junho nos deixa muitas lições e reflexões.

Lembramos que, na Internet, o pessoal é político: num contexto em que a cada dia espaços são fechados e as contribuições das mulheres são desvalorizadas, expressar e compartilhar nossas experiências e opiniões pessoais são atos revolucionários. Nós identificamos que não há uma única maneira de coexistir com a tecnologia: algumas são criativas, algumas são “prosumers”, algumas têm blogs, algumas criam aplicações, algumas programam, algumas escrevem, algumas desenham, algumas tiram fotos, algumas administram fóruns, algumas editam wikis, as possibilidades são muitas.

Vemos um ambiente adverso para as mulheres que estão na internet, que se manifesta através da violência virtual e vigilância das nossas comunicações; que nos obriga a promover e incluir práticas de segurança digital em todas as nossas ações. Precisamos desenvolver estratégias mais eficazes para a construção de parcerias com pessoas e setores chaves para alcançar um maior impacto a nível local. Encontramos força e apoio na rede global do #femhack, acompanhamento e aconselhamento de colegas latino-americanas que vivem contextos de vida semelhantes aos nossos.

O que vem por aí para nós? Globalmente: mais femhacks. A nível nacional: mais femhacks. Estamos empenhadas em proporcionar oportunidades de reflexão e de criação em que o feminismo anda de mãos dadas com a tecnologia. Queremos continuar crescendo, ver um mapa completo de pontos cor de rosa. Espero estar na frente do computador, em um par de meses, trabalhando em uma nova convocatória, desta vez para a segunda #femhack.

*Gema Manzanares, comunicadora, (ciber)feminista, ativista, fundadora do @EnRedadasNi e designer nicaraguense. @gemadenisse

Imagem: Constanza Figueroa / Derechos Digitales