Pelo livre acesso à Internet

by Digital Rights LAC on abril 6, 2015

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As empresas prestadoras de serviços de Internet na América Latina estão aumentando as ofertas de planos que incluem acesso a certos aplicativos populares de forma gratuita ou que não implicam consumo do pacote de dados. O zero rating chegou à região e nem todos estamos tão contentes.

Por María del Pilar Sáenz*

O zero rating é uma prática bastante criticada por conflitar com o princípio de neutralidade da rede, que faz parte das garantias para manter a Internet livre e aberta. Em geral, as ofertas têm como finalidade, aumentar o número de usuários de Internet com promoções, que atraem um setor bem específico do mercado: aquele que não tem muita experiência com a tecnologia e, portanto, somente conhece os serviços mais populares e utiliza os mesmos para interagir com ferramentas de “mídia social”, pelo menor custo possível.

Na prática, quando não se garante o acesso em igualdade de condições para toda Internet, começam a aparecer problemas, como a criação de “jardins limitados” ou espaços virtuais onde as empresas têm o controle sobre os aplicativos ou o conteúdo disponível e a capacidade de restringi-los. Os “jardins limitados” impossibilitam que os usuários acessem toda a informação disponível, o que gera uma direção na sua capacidade de tomar decisões.

Também surgem problemas de concorrência. Se alguém toma decisões sobre quais programas, aplicativos e/ou recursos estão disponíveis, outros tantos ficam de fora, incluídos os concorrentes diretos e novas propostas que não terão forma de chegar até seus usuários potenciais.

Um terceiro problema é a afetação cultural. Nos últimos 30 anos, surgiu uma série de culturas ao redor da rede, que lutaram para mantê-la livre e aberta. Um exemplo é a chamada cultura hacker, baseada nos princípios da ética hacker: uma série de valores, entre eles, o livre acesso ao conhecimento e a acessibilidade. O trabalho destas comunidades está na base da Internet e de todas as grandes empresas que se nutrem deste ecossistema. Sem livre acesso a Internet, este ciclo corre o risco de se romper e, no lugar de pessoas curiosas e ativas, capazes de inovar, veremos cada vez mais, simples consumidores passivos que não diferenciam Facebook de Internet.

Um dos primeiros países sobre os quais temos informação do impacto de planos zero rating é o Paraguai, onde a Tigo, em parceria com o Facebook, oferece há mais de um ano, um plano de Facebook gratuito. O Mark Zukerberg falou desta parceria em fevereiro de 2014, durante o Mobile World Congress 2014, em Barcelona: “No Paraguai, estamos trabalhando com a Tigo, e eles também viram que o número de pessoas usando dados da Internet cresceu 50% durante o período da parceria”.

Em 2015, o caso icônico para a região é a Colômbia, onde o Facebook, em parceria com o governo do presidente Juan Manuel Santos e, novamente através de um acordo com a Tigo, acordou a primeira implementação na região, do programa Internet.org. Seguindo a informação de sua página web, o Internet.org é uma iniciativa impulsionada pelo Facebook, que “aglutina líderes em tecnologia, organizações sem fins lucrativos e comunidades locais, para conectar os dois terços da população mundial que não contam com acesso a Internet”.

Na Colômbia, o Internet.org oferece o acesso gratuito a 16 web sites: 1doc3, 24 Symbols, AccuWeather, Agronet, BabyCenter & MAMA, Facebook, Girl Effect, Instituto Colombiano para la Evaluación de la Educación, Messenger, Mitula, Para la Vida, Su Dinero, Tambero.com, UNICEF, Wikipedia e YoAprendo. O lançamento do projeto contou com a presença do criador do Facebook. Pese que se tentava dar acesso a alguns aplicativos, os comunicados de imprensa do governo e os grandes meios de comunicação anunciaram esta iniciativa, como uma iniciativa que busca proporcionar acesso a Internet.

Semanas depois, no Mobile World Congress 2015 em Barcelona, o Zuckerberg mencionava que “50 por cento dos usuários de dados na Colômbia foram beneficiados com o Internet.org”. Não há números oficiais que nos permitam contrastar esta afirmação. Sendo assim, significaria que, neste momento, a metade dos usuários de dados na Colômbia não estão acessando a Internet, mas sim uma versão limitada e imprecisa da rede através do Internet.org.

Não sabemos quais serão os próximos países da região a acolher a Internet.org como parte de suas políticas de Estado. Apesar de Zukerberg, em setembro de 2014, já ter adiantado os trâmites com o governo do México, até a data não há nenhum anúncio oficial. Contudo, em março deste ano, comentou-se que, para 2015, dois novos países da América Latina entrarão noInternet.org.

O que existe neste momento é uma proliferação de planos e ofertas, que incluem acessos gratuitos a alguns serviços. No Peru, há ofertas de WhatsApp gratuito pela Claro. No México, a Telcel manteve uma promoção de WhatsApp gratuito, de agosto a dezembro de 2014, e agora é a Movistar quem está oferecendo um plano que diferencia o acesso a redes sociais (Facebook, Twitter, WhatsApp) e a e-mail para o resto da Internet. No Paraguai, a Tigo mantém a promoção do Facebook e WhatsApp grátis. Na Colômbia, além do Internet.org, os operadores também oferecem WhatsApp grátis.

Como já estabelecido, estes planos, promoções e implementações baseados em práticas de zero rating geram diversas tensões com a neutralidade da rede. Por isso, para os defensores destes modelos, o desenvolvimento de regulamentações e políticas públicas ao redor da rede, poderiam representar um obstáculo.

Dos países da região, o Chile é o único que se pronunciou sobre o assunto de forma clara e contundente. A Subsecretaria de Telecomunicações advertiu às empresas de Telecomunicações, que em sua interpretação sobre a lei de neutralidade, aquelas ofertas comerciais que garantem a gratuidade no uso de aplicativos de redes sociais específicas (ou outras), como Whatsapp, Facebook, Twitter, possuem um caráter eminentemente discriminatório ao beneficiar um aplicativo específico em desmedro de sua concorrência. Assim, a única forma que os operadores chilenos podem oferecer planos de “zero rating” é a gratuidade, e se aplica a todos os ofertantes de conteúdo da mesma classe. Isto suporá que, se um operador no Chile quer oferecer Whatsapp grátis, também deverá oferecer o Telegram, Line, Viper e qualquer outro aplicativo similar.

Os demais países ainda não se pronunciaram. No caso colombiano, a neutralidade da rede admite, na sua definição, a segmentação de mercado. Na interpretação realizada pelo órgão de controle –ou seja, a Comissão de Regulamentação de Comunicações–, os operadores podem oferecer planos sempre que coloquem à disposição de seus usuários, uma alternativa ou plano tarifário que no contemple nenhuma limitação quanto aos serviços, conteúdos ou aplicativos, os quais podem ser acessados pelo usuário. Uma interpretação da neutralidade da rede que difere bastante da chilena e que supõe que na Colômbia tenhamos planos grátis de “Whatsapp” ou “Internet.org”, ou planos tarifários econômicos para “chat” ou para “redes sociais”, onde o operador define quais serviços quer incluir.

No Brasil, ainda está em discussão à regulamentação do Marco Civil da Internet. Espera-se que o tema zero rating faça parte do debate sobre neutralidade da rede neste país.

Enquanto as discussões e determinações dos países são conformadas e mantidas as discussões internacionais sobre o assunto, nos diversos foros relacionados sobre Internet, os protestos provenientes dos próprios usuários da Internet não ficam atrás. Ouviram-se algumas vozes na região em desacordo ao zero rating.

Na Colômbia, Carolina Botero, da Fundação Karisma, afirmou que, o “Internet.org não é Internet”. No caso mexicano, viu-se com preocupação a inclusão do tema de segmentação de mercado dentro da discussão de neutralidade da rede na reforma da Lei Telecom. No Brasil, surgiram dúvidas sobre a conveniência deste tipo de implementações. Neste sentido, advertem sobre a criação de “castas” na Internet e o que supõe, em termos de rupturas, diante de um processo de inclusão digital.

A meu critério, uma das reações mais curiosas é a paraguaia. Na ausência de um marco legal que o limite, a resposta tem sido a partir do tecnológico. Um desenvolvedor paraguaio criou um programa que estabelece um túnel a partir do Facebook, que permite navegar por toda Internet, aproveitando uma vulnerabilidade no aplicativo do chat do Facebook. Nas palavras do desenvolvedor, “Todos nós sabemos que a Internet é para acessar muitos sites, etc. Então senti que esta campanha [Internet.org] é uma limitação séria” Ou seja, seguindo o espírito daqueles que criaram a rede, o desenvolvedor estabelece uma solução prática para garantir que o Internet.org não limite o acesso a Internet.

No fundo, sabemos que o objetivo das empresas encabeçadas pelo Facebook com a Internet.org, não é altruísta. O Zuckerberg deixou bem claro, neste ano, em Barcelona, quando afirmou: “Para finalizar, queremos fazer mais dinheiro e conectar mais pessoas no processo”. Pode ser que o tiro saia pela culatra. E, seguindo o caminho paraguaio, conectar mais pessoas permita que aqueles que mais precisam possam sair do “jardim limitado”, criado pelo Internet.org e os outros planos de zero rating para ter livre acesso à Internet.

* Física de profissão, ativista por vocação. Entusiasta do software livre, das tecnologias abertas e da cultura livre. Trabalho na Fundação Karisma e sou parte do coletivo RedPaTodos e Hackbo. @mapisaro