O voto eletrônico não é a solução

by Digital Rights LAC on outubro 27, 2015

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O período eleitoral de 2015 na Argentina revelou lacunas que geraram desconfiança nos cidadãos. O destaque foi o processo eleitoral em Tucumán com suas doses de clientelismo, violência e trapaça. Tendo em conta este triste espetáculo surge o clamor pela adoção do sistema de voto eletrônico, cujo cartão de visita destaca a experiência da cidade de Buenos Aires.

Por Delia Ferreira Rubio, Doutora em Direito

Cada problema requer uma solução e ainda não foi inventada a máquina que resolve todos os pontos fracos de um sistema eleitoral como o da Argentina.

O problema de roubo de cédulas se corrige com a cédula única, que contém todos os candidatos. O sistema de cédula única em papel implementado em Santa Fé e Córdoba tem funcionado bem e é mais barato do que o sistema de votação eletrônica implementado na cidade de Buenos Aires ou em Salta.

O clientelismo, o abuso de recursos públicos para fins eleitoreiros, a violência contra as autoridades da mesa, a queima de urnas, o negócio de fiscais de um partido que se deixam comprar para não cumprir a sua função, a entrega fraudulenta de documentos argentinos a cidadãos de outros países, a manipulação dos registros eleitorais, a manipulação no upload de dados da contagem provisória; tudo isso ainda pode seguir acontecendo mesmo que  se implemente um sistema de votação eletrônica.

A implementação de qualquer sistema de votação eletrônica também abre novas janelas de oportunidade para os “vivos” de sempre. Em Buenos Aires, um grupo de especialistas em segurança da informação detectou problemas que a auditoria encomendada pela Suprema Corte tinha negligenciado. Curiosamente a reação foi perseguir os que tinham detectado as falhas.

A transmissão de informações através da Internet pode estar sujeita a interferências indesejadas. Usando códigos e outras formas de informações criptografadas acrescenta-se um espaço de opacidade. Uma linha de programa em um software pode modificar os resultados, como demonstrado em alguns estados dos Estados Unidos e também no caso do sistema utilizado na Capital Federal.

A adoção de sistemas de votação eletrônica -em qualquer de suas variantes, incluindo a “cédula única eletrônica” – deve ser analisada detalhadamente não só pensando nos problemas que supostamente resolve, mas nos quais pode gerar.

Moderno e rápido parecem ser os novos valores democráticos. Mas, mesmo admitindo que fossem, não se pode deixar de fora outros valores prioritários para a qualidade da democracia eleitoral. Moderno e rápido, mas sem garantia de sigilo da cédula é uma combinação ruim. A Venezuela e seu sistema de votação eletrônica é um bom exemplo. Moderno e rápido, mas sem transparência tampouco contribui para a legitimidade das eleições. O abandono do voto eletrônico por decisão do Tribunal Constitucional Alemão deixou isso bem claro. Moderno e rápido, mas não auditável não contribui para a integridade das eleições. As normas internacionais sobre o assunto são unânimes no sentido de que se deve permitir auditoria profissional e política de todo o sistema. Moderno e rápido, mas privatizado, põe em risco de dependência a operação fundante da legitimidade democrática.

O recente escândalo da Volkswagen colocou em destaque a questão de que a mera utilização de tecnologia não garante o respeito aos parâmetros legais. A alteração do software fez com que milhões de carros entrassem no mercado violando as normas de segurança ambiental. Isso se sucedeu ao longo de vários anos e não precisou de muitas pessoas para realizar a manobra. Poderia acontecer com sistemas eletrônicos de votação? Não resta dúvida.

Os órgãos eleitorais argentinos contam com capacidade técnica suficiente para controlar de forma eficaz o sistema? Não, e nos distritos que implementaram a votação eletrônica o que foi visto é a crescente privatização das fases do processo eleitoral e a terceirização dos controles nas instituições acadêmicas que não viram -ou não quiseram ver- as deficiências do sistema.

Nem os partidos políticos são capazes de defender efetivamente os seus direitos. Em alguns casos, nem sequer se proporciona acesso às informações necessárias a eles. A auditoria de um sistema de votação eletrônica não se satisfaz com a “presença de um fiscal de informação” vendo como as máquinas são ligadas. Em sistemas de votação eletrônica, a manipulação é menos visível e pode ser realizada com a participação e conhecimento de poucas pessoas.

É muito provável que a Argentina se concentre -terminadas as eleições presidenciais- na mudança do sistema eleitoral em todo o país. Para que a eventual reforma contribua na melhora da qualidade e confiabilidade do sistema deveria abranger não só a análise do instrumento de emissão do voto (a cédula), mas os outros elementos do processo eleitoral a partir da emissão de documentos e elaboração do registro até a contagem oficial. Especial atenção deve ser colocada na contagem provisória hoje sob a responsabilidade do atual governo que a terceiriza para uma empresa privada. Esta contagem que é o que concentra a atenção do público não tem valor legal, mas tem um grande significado político.

Se somente concentrarem a atenção na forma de emissão do voto, temo que os problemas mais graves da democracia argentina continuarão inalterados. Seria lamentável perder mais uma vez a oportunidade de somar transparência e legitimidade. No entanto, podemos lidar com esse cenário de discussão reduzida ao “sim ou não” para a adoção da votação eletrônica. Neste caso, na minha opinião, o debate deve girar em torno de uma série de garantias mínimas.

Em primeiro lugar, a discussão deve ser séria e não baseada em falsos relatos. Em Buenos Aires, por exemplo, a lei é clara ao exigir que a adoção de votação eletrônica passe pelo Legislativo. O que não foi feito. No que é, sem dúvida, um sistema de votação eletrônica, foi renomeado e assim esquivou-se da lei. Para a Justiça a manobra foi fraudada, com a honrosa exceção do então presidente do Supremo Tribunal.

Qualquer sistema de votação eletrônica a ser imposto deve garantir o sigilo do voto. Essa garantia deve ser real aos olhos de qualquer eleitor, e eficaz do ponto de vista tecnológico. Deve-se evitar com o pretexto de facilitar a votação, que o ato de marcar a preferência pessoal se transforme em uma peregrinação com os eleitores na frente da máquina junto com a família, amigos ou auxiliares.

Deve-se evitar a privatização do processo eleitoral. A dependência técnica dos organismos de controle representa um sério risco para a trasnparência das eleições e a legitimidade dos eleitos. Órgãos de gestão eleitoral devem contar com a capacidade técnica e recursos financeiros necessários para desempenhar as suas funções com total independência.

O sistema deve assegurar a mais ampla auditoria pelos partidos políticos e  cidadãos. Se o sistema não é manipulável não há nenhum problema em torná-lo transparente. Especialistas em informática, as organizações da sociedade civil ou até mesmo cidadãos individuais têm direito a informações técnicas. Não só através de audiências, que são uma mera formalidade, mas por meio da possibilidade de analisar o sistema na sua totalidade.

A transparência e auditabilidade deve incluir o processo de recontagem dos votos na mesa de votação, no upload dos dados e contabilização do escrutínio provisório e na contagem final. As informações devem estar disponíveis para todas as fases do processo em que os dispositivos eletrônicos são incorporados, seja para leitura de códigos, transmissão de dados, cálculo e publicação dos mesmos.

Informações sobre a tabela de resultados, contagem provisória e definitiva devem permanecer disponíveis na Internet em um formato acessível, amigável, em formato utilizável e em tempo real. A importância e utilidade desta informação não termina dois dias após a eleição.

Creio que atualmente, o melhor conselho seria irmos para um sistema de cédula única de papel antes de embarcar no negócio do voto eletrônico. Mas o mais importante seria ocupar-se de acabar com o clientelismo e o abuso de poder para fins eleitorais. Se a forma de fazer política é o clientelismo (incluídos nessa categoria desde a entrega de cestas básicas até a gestão política dos programas sociais), o dispositivo de votação não mudará nada.

Se a equidade na campanha não for garantida, e apenas forem impostos limites para as forças de oposição enquanto o partido no poder utiliza recursos estatais para se autofinanciar, o dispositivo de votação não mudará nada. Se alguns políticos e seus seguidores estão prontos para a utilizar a violência e as queimas de urnas para ganhar as eleições o dispositivo de votação não mudará nada, mesmo que seja rápido e moderno.

Imagem: (CC-BY) NDeane / Wikimedia Commons