O guardião que vigia os cidadãos

by Digital Rights LAC on novembro 29, 2014

StopWU

No Uruguai também são relatadas compras de tecnologias de vigilância e os cidadãos se alarmam. Quando se analisa a abrangência deste tipo de ferramentas digitais e os riscos sempre vigentes de práticas antidemocráticas, a promessa das autoridades de “respeitar as garantias de sempre” já não é suficiente.

Por Fabrizio Scrollini*

A notícia de que o governo uruguaio havia comprado de forma secreta um software para realizar operações de vigilância eletrônica foi surpreendente, mas não inexplicável. A segurança cidadã tem sido um dos temas mais candentes no debate público, e o governo tem avançado em diversos tipos de soluções que envolvem tecnologia: videovigilância, software e uso de drones entre outras incorporações.

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¨O Guardião¨ (nome do software recentemente comprado) permite às autoridades analisar em tempo real, ligações telefônicas e e-mails. Trata-se de uma poderosa tecnologia que, de acordo com as autoridades, será usada “com as garantias de sempre”, ou seja, mediando ordem judicial.

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A tecnologia fornecida pela empresa brasileira Digitro já foi previamente utilizada no Brasil durante a Copa do Mundo. As empresas de telefonia uruguaias já começaram a adquirir equipamentos para poder fazer a implementação. O marco sigiloso que rodeou, impediu de responder perguntas chave: Que tipo de protocolo será seguido pelas agências de segurança uruguaia ao implementar estas políticas? Quais são os amparos institucionais em termos de prestação de contas para aqueles que operem esta tecnologia? Como as agências de segurança uruguaias cooperarão com outras agências em nível internacional?

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Dois fatores complicam responder estas perguntas: o manto sigiloso sobre esta operação e a falta de regulamentação clara. Por um lado, a compra desta ferramenta sem nenhum tipo de controle parlamentar e secreto, remete a um procedimento, no mínimo, não adequado em uma democracia. Por outro lado, aqui convivem diversos tipos de regulamentação: proteção de dados pessoais, regulamentação sobre sistemas de inteligência e acesso à informação pública. No Uruguai não existe uma análise de como este jogo de regulamentação estabelece normas claras para a operação desta tecnologia que respeitem os direitos humanos fundamentais.

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Este cenário deve, por sua vez, ser contextualizado na realidade uruguaia: um país em geral, respeitador da lei e dos direitos humanos. Mas os direitos humanos na era digital são pouco compreendidos pelos tomadores de decisões. Um exemplo do exposto é a recente declaração das organizações que integram a Rede de Governo Aberto no Uruguai, opondose a uma lei de “crimes da informática”. Mesmo sabendo que a norma tem alguns aspectos atendíveis, muitas das definições não são claras, e em alguns claros proíbem comportamentos totalmente legais. Atualmente, várias organizações da sociedade civil, tais como, DATA, CAINFO e Anistia Internacional, manifestaram preocupação pelo tratamento deste assunto. A compra do Guardião e o escasso debate do mesmo demonstra a necessidade de repensar várias políticas públicas em matéria de segurança no país. O Uruguai é hoje uma democracia consolidada, mas, no passado, governos autoritários estabeleceram sistemas de vigilância sem controle sobre a população civil. Ainda que esse passado esteja distante, o futuro a construir deve ser guiado para prever abusos.

Hoje, a tecnologia permite níveis de vigilância sobre a população nunca visto antes e muito mais eficientes. As necessidades de segurança dos Estados em um mundo complexo, onde poderosas organizações criminais também têm acesso a esta tecnologia, são reais. Mas, as respostas a partir do Estado devem ser guiadas sob os princípios de necessidade e proporcionalidade, respeitando os direitos humanos. Para isso, não basta afirmar que existirão “as garantias de sempre”, mas sim estabelecer regulamentação adequada e capacitar a todos os atores (governo, sociedade civil, parlamentares e juízes) para novos tipos de desafios na era digital.

A chegada do Guardião e o projeto de lei de crimes da informática, entre outras medidas, preveem um futuro sombrio para os direitos digitais no Uruguai, e é uma tendência que parece ser consolidada no continente. Somente a ação decidida e inteligente em busca de normas e políticas que proporcionem garantias e uma sociedade civil com capacidade de controle, pode evitar isso.
*Data Uruguay. Este texto resume alguns pontos do trabalho “Penumbra: Surveillance, Security and Public Information in Uruguay” disponível online.