Documentando os bloqueios à Internet na Venezuela

by Digital Rights LAC on outubro 29, 2014

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Marianne Díaz Hernández. Advogada e narradora venezuelana, ativista de @accesolibreve e líder legal da Creative Commons na Venezuela.
Twitter: @mariannedh

Mesmo continuando sem aparecer nos relatórios globais de censura à Internet, a Venezuela possui um histórico de práticas duvidosas em relação à filtragem de conteúdos e à persecução de usuários por suas atividades online.

 

Apesar daquilo que possa ser criado, os antecedentes de práticas de filtragem à Internet na Venezuela não são nada recentes: datam, no mínimo, do ano de 2007, quando foram relatados os primeiros bloqueios de web sites realizados pela Cantv, a principal companhia de telecomunicações do país, renacionalizada nesse ano pelo então presidente Hugo Chávez, o qual acabava de começar seu terceiro mandato governamental.

A partir desse ano, e durante os sucessivos, uma série de práticas (detenções de usuários de redes sociais, bloqueio de web sites a partir da Cantv, polêmicas declarações sobre a influência das redes sociais na política nacional e a estabilidade da nação) começou a se tornar habitual. Duas pessoas (ambas com bem poucos seguidores e quase nada de influência) foram detidas em 2010 por escrever no Twitter sobre o sistema bancário, após uma onda de intervenções a entidades financeiras, sob a acusação de “desestabilizar o sistema bancário” do país. Após as eleições parlamentares de 2011 (quando o Ministro das Telecomunicações desconectou todo o país da Internet durante aproximadamente trinta minutos, alegando que a medida havia sido tomada “para evitar o hackeamento do site do Conselho Nacional Eleitoral”), um cidadão foi detido pela presunção da publicação no Facebook, de uma foto de material eleitoral sendo queimado (que correspondia a um processo eleitoral anterior), apesar de que era evidente que o usuário não tinha sido a origem da divulgação da foto (por demais massivas nas redes sociais). Web sites como o “Noticiero Digital” e “La Patilla” foram temporariamente bloqueados em diversas ocasiões pela publicação de certos conteúdos, como a cobertura dos confrontos na cadeia de La Planta. Em 2013, após a morte do presidente Chávez, todos os domínios .co (relacionados com encurtadores de endereços como aqueles do Twitter), ficaram bloqueados por dois dias, em uma tentativa de evitar que uma suposta gravação de Chávez fosse disseminada na rede.

Não obstante, a gestão do atual presidente, Nicolás Maduro, sucessor de Chávez, depois de seu falecimento, trouxe consigo sua própria política de meios eletrônicos, em toda aparência uma versão redobrada da anterior. Desde novembro de 2013, quando Maduro anunciara em rede nacional ao vivo sua decisão de bloquear todo web site que contivesse informação sobre a cotação do dólar paralelo (incorrendo no bloqueio a partir da CONATEL, entre 500 e 900 sites web), sua política em relação à matéria ficou clara. Mesmo sabendo que os bloqueios a sites sobre o denominado “dólar negro” datam também de muitos anos atrás (com o controle cambial remontando a mais de uma década, em 2003), Chávez tinha-se limitado a proscrever dois ou três sites emblemáticos, jamais se entregando a uma campanha tão massiva de filtragem de conteúdos.

Em 2014, foi a vez dos protestos. A partir de meados de fevereiro, quando foram iniciados os protestos no estado Táchira, e durante março e abril, quando tiveram seus pontos mais culminantes nas cidades mais importantes do país, a rede foi utilizada para documentar, organizar e informar sobre os protestos e, deste modo, tornou-se um dos objetivos a controlar por parte do governo, que colocou em uso, tanto práticas sutis, como a suspeita de throttling nas conexões (que se tornavam terrivelmente lentas durante a noite, quando era maior a repressão aos protestos e as pessoas recorriam às redes para se informar perante a ausência absoluta de cobertura nos meios de sinal aberto), como medidas muito mais drásticas (o estado Táchira, onde os protestos foram mais intensos, ficou completamente desconectado da Internet durante dois dias sem que as autoridades dessem nenhuma explicação plausível a esse respeito). O governo anunciou publicamente estar interferindo nas comunicações do aplicativo Zello, denunciando que este estava sendo utilizado para planejar os protestos, e imediatamente depois este foi bloqueado. Aplicativos de VPN, como TunnelBear, ou de anonimato como Anonymouse tornaram-se igualmente inacessíveis.

De 14 de fevereiro a 08 de abril de 2014, a organização não governamental Acceso Libre solicitou relatórios de inacessibilidade em torno de 25 sites representativos, de diversas índoles, através do Herdict e com o apoio de usuários de todo o país. Depois de 2155 relatórios individuais solicitados, observou-se, entre outras coisas, que enquanto sites como aqueles que informam sobre o dólar paralelo permaneciam bloqueados em todos os provedores, outros sites estavam evidentemente inacessíveis somente na Cantv (como Pastebin, PasteHTML e outros similares). Casos similares ocorrem com ferramentas de VPN e anonimatos como TunnelBear e Anonymouse, que apresentam quase na sua totalidade, relatórios de bloqueio, proporcionalmente muito mais na Cantv do que em outras operadoras.

Mesmo sabendo que o governo alega que estes bloqueios têm fundamento na lei venezuelana, certo é que esta (a Lei de Responsabilidade Social de Rádio, Televisão e Meios Eletrônicos, conhecida como RESORTE-ME) contradiz os padrões internacionais em matéria de direitos humanos, ao conceder competências para a restrição de conteúdos a um órgão administrativo, dependente da Presidência da República (CONATEL). A lei RESORTE-ME, aprovada em 2011, confere aos ISPs, a obrigação de bloquear todo conteúdo que se enquadre a uma serie de previsões vagas, como “desconhecer as autoridades” ou “gerar ansiedade”. Mas ainda as medidas tomadas não cumprem com o princípio de proporcionalidade. Cabe lembrar que, a Declaração Conjunta sobre Liberdade de Expressão na Internet da OEA, estabelece que a filtragem de sites completos constitui uma medida extrema, medida que somente é justificada em casos gravíssimos, y que a filtragem de conteúdo não controlado pelo usuário final constitui uma forma de censura prévia (prática proibida pela Constituição Venezuelana). Na mesma concatenação de ideias, a Declaração Conjunta estabelece que “a interrupção do acesso à Internet, ou a parte desta, aplicada a populações inteiras ou a determinados segmentos do público (cancelamento da Internet) não pode estar justificada em nenhum caso, nem sequer por razões de ordem pública ou segurança nacional”, e o mesmo se aplica às medidas como o throttling, com o qual, práticas como aquela admitida pelo mesmo Executivo durante as eleições de 2011, constituem uma violação frontal à liberdade de expressão na Internet.

Culminando 2014, os protestos se esgotaram quase na sua totalidade, apesar de que as circunstâncias que os originaram continuam sendo as mesmas e de que não foi conseguido nenhum acordo com o governo. Não obstante, tudo parece apontar que as políticas em matéria de comunicação na rede por parte do governo venezuelano seguem a mesma linha, imperturbáveis: somente na semana passada, duas pessoas foram detidas por causa de mensagens publicadas no Twitter (ambas em relação ao assassinato do deputado do Partido Socialista, Robert Serra), e o portal de notícias Infobae foi bloqueado, desta vez de maneira pública e aberta, de acordo com depoimentos dados pelo presidente da CONATEL.

A absoluta carência de transparência em relação a estes procedimentos, e o tom no qual as autoridades se expressam com respeito aos meios eletrônicos e redes sociais (acusando-os de contribuir para a “guerra psicológica”), ligado a medidas como a criação do Centro Estratégico de Segurança e Proteção da Pátria (CESPPA), uma agência de segurança que tem como missão “neutralizar os planos de desestabilização contra a nação”, e entre outros poderes aquele de declarar como classificada qualquer informação, incluindo conteúdos da Internet, demonstram uma clara vontade de continuar apertando a chave do livre fluxo de informação na Web.