Dados pessoais: à espera de um texto

by Digital Rights LAC on maio 5, 2014

Marco Civil

Pouca gente lembra, mas o Brasil iniciou em 2010 um processo para criar uma lei específica de proteção de dados pessoais. Pode-se atribuir parte desse desconhecimento ao próprio governo federal, que por muito tempo manteve parada a sua iniciativa de elaboração do texto de lei, mas também ao fato de que nossa cultura não se mostra permissiva a evasões de informações pessoais. Mas o amadurecimento do Marco Civil da Internet em lei abre a porta para que a privacidade ocupe um lugar central na pauta política da cultura digital no País.

De Paulo Rená da Silva Santarém

Entre novembro de 2010 e abril de 2011, uma parceria do Ministério da Justiça e a Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro realizou o debate público sobre privacidade e proteção de dados pessoais. Em cinco meses, foram recebidas 14 mil visitas e 795 comentários. Todavia, todo o acúmulo de discussão não se mostrou suficiente para garantir a apresentação de um anteprojeto de lei pelo Poder Executivo.

O governo federal só retornou ao assunto em 2013, quando Edward Snowden denunciou a vigilância em massa realizada na Internet pela Agência Nacional de Segurança dos EUA em parceria com órgãos semelhantes de outros quatro países (Austrália, Canadá, Nova Zelândia e Reino Unido). Ainda assim, a abordagem se limitou a propor mudanças no texto do Marco Civil da Internet, que já tramitava na Câmara dos Deputados desde agosto de 2011. E mesmo as mudanças propostas – como a inicial exigência de centros de dados no país e a persistente obrigação de retenção de dados de acesso a serviços online – não se mostram exatamente adequadas para a proteção da privacidade.

Certamente o desinteresse do governo brasileiro em dar continuidade a essa pauta se vincula à pouca sensibilidade da população para as questões de preservação de dados pessoais. É surpreendente pensar na imensa quantidade de cadastros que comumente são preenchidos para acessar quaisquer serviços, públicos ou privados, ou mesmo para adquirir produtos. Desde informar o CPF durante compras para obter isenção de tributos, até dar seu endereço residencial para participar de uma campanha promocional veiculada pela TV, no Brasil informações pessoais são facilmente obtidas por qualquer empresa.

Esse contexto imprime diversos riscos, potencializados pela crescente exigência de que cada vez mais dados sejam fornecidos. Na lógica da segurança pública, a retenção como regra e o acesso do Estado aos dados são defendidos como sendo necessários para viabilizar investigações de ilícitos, especialmente em meio eletrônico; na lógica do mercado, os perfis de consumo são verdadeiros ativos que podem ser facilmente convertidos em dinheiro por meio de marketing direcionado; na lógica do entretenimento, o big data permite aos consumidores o conforto de uma experiência mais personalizada. E sobra pouco espaço para se problematizar a questão do direito a uma vida íntima.

Sem um debate político de caráter público, aberto à participação e submetido ao crivo social amplo, atualmente as decisões sobre a proteção da intimidade são tomadas de acordo com interesses privados. Isso é muito problemático, pois o que é mais rentável do ponto de vista do mercado não necessariamente converge para a proteção de um direito. E o próprio governo, caso não sejam impostos limites legais para a sua atuação, pode desempenhar um papel tirano no tratamento das informações pessoais de adversários internos e externos.

É sempre importante frisar que não se trata apenas da internet. Primeiro, cartões de crédito, telefones celulares, tocadores de mp3, videogames acionados por movimento e até mesmo carros e TVs inteligentes: qualquer dispositivo pessoal que guarde informações digitalizadas. Segundo, as câmeras de vigilância, catracas eletrônicas, identificação biométrica e registros ligados ao CPF. É crescente o número de meios para se construir um mapa completo sobre a vida de qualquer pessoa.

A privacidade, em uma visão mais ampla, pode ser entendida como o direito de traçar, para a própria vida, a linha que separa a porção pública da parte íntima. Trata-se de uma escolha livre e individual, de acordo com as próprias convicções e forma de ver o mundo. Uma garantia de que cada pessoa pode ter uma vida privada, nos termos em que cada pessoa quiser. E mais: sem que haja imposição sobre essa escolha, e com a segurança de que não haverá desrespeito.

Mas é claro que a realidade não segue apenas a lógica do Direito. Individualmente, só umas poucas violações de privacidade valerão o esforço de tempo e dinheiro para se buscar judicialmente uma punição ou reparação. E no âmbito público, no exemplo da vigilância pela web entre Estados, há um componente político muito forte. Contudo, em meio à complexidade social, que envolve política, economia, religião, ciência, entretenimento e mesmo a conveniência, uma hora acaba reaparecendo a necessidade de se definirem limites de certo e errado em termos do que é lícito e o que é ilícito.

O amadurecimento do processo de criação do Marco Civil ampliou a percepção de que é necessário assegurar a intimidade das pessoas, dentro e fora da Internet. O contexto se mostra ideal para que o governo federal retome o debate sobre privacidade, que em última análise apenas objetiva concretizar um comando expresso da Constituição Federal, o qual por sua vez ecoa normas internacionais americanas e globais. Mesmo chegando atrasado nesse debate, o Brasil pode anda assumir algum protagonismo também nesse ponto. Ou pelo menos alcançar o patamar dos demais vizinhos latino americanos, que já contam com normas mínimas de proteção de dados pessoais.