Convênios de órgãos educacionais com Google: o caso uruguaio

by Digital Rights LAC on agosto 24, 2015

ceibal

Em 22 de maio de 2015 um acordo foi firmado entre o Plano Ceibal (implementação uruguaia do projeto OLPC, um laptop por estudante) e a empresa Google, onde todos os estudantes (do sistema público e privado) e professores no país terão acesso, de forma gratuita e sem limite de capacidade, aos serviços de e-mail (Gmail), hospedagem de dados na nuvem (Google Drive) e ao software educativo (Google Apps for Education).

Por: Ismael Castagnet Lacuesta*

O acordo foi anunciado pelo governo com muita pompa e amplamente divulgado pela mídia imprensa uruguaia. Vários artigos (em sua maioria sem assinatura) falavam de um “salto qualitativo na educação uruguaia”, citando o Google Apps for Education como “A escola do século XXI” e falavam que este foi o primeiro passo para um acordo que “permitirá continuar trabalhando na expansão dos serviços oferecidos à educação. “

Em novembro de 2014, o gerente de desenvolvimento de negócios para a América Latina do Google for Education (“uma série de ferramentas gratuitas de ensino e aprendizagem”), Jim Ballentine, tinha visitado as instalações do Plano Ceibal “para impulsionar acordos de cooperação”.

Desde o primeiro dia que o acordo foi assinado, e-mails começaram a circular entre os educadores, pesquisadores e ativistas da cultura livre tentando obter mais informações e questionando diversos aspectos de tais acordos. Foi assim que uma carta aberta foi elaborada alertando os cidadãos uruguaios ao levantar várias questões às autoridades educacionais e do governo nacional, e se começou a recolher assinaturas de apoio à carta.

Questionou-se a forma como a decisão foi tomada: a falta de consulta à comunidade educativa, a falta de informação sobre os alcances do acordo, a falta de fundamentos pedagógicos, o fato de que a maioria dos atuais laptops entregues às crianças uruguaias (de vários modelos) não podem executar o Google Apps for Education (o que nos leva a suspeitar que pode haver o interesse em comprar laptops do Google em futuras licitações), e assim por diante. Também foram citados exemplos de descumprimentos de tais acordos pelo Google e pela falta de seriedade das autoridades do Google e até mesmo do Plano Ceibal na hora de responder a questionamentos sobre a privacidade de dados dos usuários.

A carta afirma que “a tecnologia não é neutra; implica uma escolha de princípios e tem consequências que vão além de sua funcionalidade ou gratuidade”, um aspecto que consideramos de vital importância, pois todos os dias somos confrontados com um discurso hegemônico em que somos levados a acreditar que os avanços tecnológicos são bons em si mesmos, sem pensar em outros aspectos como o porquê, para quê, como ou quem.

Apesar de ser suspeito o anúncio de muitos benefícios completamente gratuitos (lembrando a expressão quando a esmola é grande, o santo desconfia). Considerando a visita do gerente de desenvolvimento de negócios do Google for Education, temos todo o direito de suspeitar que há aqui mais do que uma colaboração desinteressada da multinacional. A pergunta é: onde está o negócio para o Google em tudo isso?

Nós começamos a procurar acordos semelhantes e só encontramos alguns antecedentes: o acordo com o estado de Baja California (México) em maio passado; acordos específicos com universidades em diferentes países e o acordo para registrar sítios arqueológicos no Peru. Conclui-se que foi a primeira vez que um acordo deste tipo foi assinado envolvendo todos os professores e alunos de um país. Como as coisas geralmente não acontecem por acaso, temos o direito de supor que este acordo é um experimento, que se provado bem sucedido, será replicado no resto da América Latina e em outras regiões do mundo.

Na carta propomos que seja estudada a possibilidade de fornecer ferramentas semelhantes às do Google por organismos públicos uruguaios. Perguntamos sobre o controle das autoridades uruguaias sobre o conteúdo hospedado em servidores do Google fora da jurisdição nacional (ou seja, longe da justiça uruguaia). Apresentamos o risco de que as políticas educacionais do Uruguai acabem dependendo da multinacional (e sejam determinadas por ela). Finalmente pedimos que se reconsidere a decisão de assinar o acordo e que se habilite uma discussão mais ampla possível sobre este assunto.

Felizmente, tivemos uma grande repercussão com a carta. Nos deram espaço na rádio, televisão e imprensa escrita da mídia nacional e internacional. Houve uma assembleia de professores do Instituto de Computação da Faculdade de Engenharia da Universidade da República, que decidiu solicitar audiências com parlamentares de todos os partidos políticos para manifestar as nossas preocupações. Ações foram coordenadas com os sindicatos de educação, organizações estudantis e da sociedade civil relacionadas com a cultura livre, como Creative Commons Uruguay, DATA, Derecho a la Cultura y CESoL (Centro de Estudios de Software Libre).

A Universidade da República, em seu mais alto órgão, expressou profunda preocupação com o referido acordo sem a discussão prévia exigida. O Reitor convocou uma reunião com funcionários da Administração Nacional de Educação Pública, Plano Ceibal, ANTEL (empresa pública de telecomunicações, a maior do país), a Agência do Governo Eletrônico para a Sociedade da Informação e Conhecimento e a Agência Nacional de Investigação e Inovação, entre outros, para discutir esta questão.

Nessa reunião foi decidido suspender o acordo com o Google (no que diz respeito aos alunos, pois os professores já podem acessar a plataforma) até que a Faculdade de Engenharia e ANTEL apresentem uma proposta alternativa de uso de recursos informáticos para a educação dentro de um mês, sob a premissa de que os sistemas estejam hospedados no país.

Há várias maneiras pelas quais um convênio desse tipo pode ser questionado, desde aspectos educativos e pedagógicos até comerciais, os que se referem ao direito à privacidade dos dados dos cidadãos e até mesmo aspectos políticos a considerar.

Estes dias temos sofrido o desprezo de alguns jornalistas que nos perguntam para quê serve ao Google armazenar as tarefas, fotos e vídeos de estudantes uruguaios. Isto demonstra a falta de visão desses “jornalistas” sobre a realidade política e tecnológica a nível global.

Aqueles que agora são estudantes uruguaios e armazenam informações triviais na nuvem da multinacional são os futuros trabalhadores, sindicalistas, empresários e políticos uruguaios. Dentro de duas ou três décadas serão a alma de nosso país e se este acordo se manter em vigor significará que o Google conhecerá tudo sobre os nossos cidadãos desde sua jornada educacional a seus contatos em todas as fases de sua vida, seus pensamentos políticos e até mesmo informações pessoais que talvez nem as pessoas mais próximas saibam, e que todo cidadão tem o direito de manter em segredo. São possibilidades quase ilimitadas de uso da informação (novamente, de todos os cidadãos de um país) para obter beneficios econômicos e até mesmo políticos.

Também nos foi dito que o Google já possui todos os nossos dados, e não precisa de nós para dar-lhes e que eles podem usar quando quiserem. É uma meia-verdade, porque, embora tenham, não podem usá-los para qualquer fim, e perante uma possível falha da multinacional (não seria a primeira vez, e já existem processos sobre esse assunto em várias regiões do mundo), os queixosos devem enfrentá-la nos tribunais dos EUA e lutar contra todo o poder econômico e midiático do Google. A alternativa de acomodar os dados dos cidadãos em servidores locais é uma opção, evidentemente, mais segura.

Outra resposta que tivemos foi que o Google se compromete a não usar os dados de estudantes uruguaios para fins comerciais. Isso nos faz suspeitar que os objetivos finais da empresa são outros, como se previu anteriormente. Se algo foi ensinado nas revelações de Edward Snowden é que todo os softwares que são fornecidos “gratuitamente” pelas multinacionais trazem portas dos fundos para que os serviços secretos dos EUA nos espionem. Isto é feito, de fato, independentemente de previsão legal.

Pois compliquemos um pouco as coisas para o Grande Irmão! Se querem ter nossos dados, que tenham (pelo menos) que hackear os nossos próprios sistemas. Entre outras coisas, porque se o fizerem e pudermos detectá-los, estarão suscetíveis a um julgamento em nossos países e com nossos sistemas judiciais, que não é pouco.

*Ismael Castagnet Lacuesta é Presidente do CESoL Uruguai.

Imagem: (CC BY-NC-SA) Pablo Britos / Flickr