Como aprendemos a deixar de nos preocupar e amar a proibição

by Digital Rights LAC on agosto 27, 2013

Crime Scene

Um grupo de projetos de lei recentemente apresentados ao Congresso peruano abordam diversos assuntos relacionados ao uso da internet. No entanto, a compreensão sobre as tecnologias e suas possibilidades é parcial e pessimista, culminando com fórmulas que propõem a proibição de tudo aquilo que não se pode controlar.

Por Miguel Morachimo, ONG Hiperderecho*

Um projeto de lei apresentado pelo congressista Omar Chehade parte da preocupação com a facilidade de acesso a conteúdo pornográfico através da Internet. Considera que é cada vez mais difícil para os pais monitorar o que seus filhos fazem online, devido aos diversos meios e dispositivos existentes para conectarem-se. Através do projeto, propõe-se a criação de uma comissão estatal dedicada a identificar e ordenar o bloqueio de todo o conteúdo inadequado para menores na Internet. Este filtro seria aplicado por padrão para todas as conexões de Internet no país e apenas seria suspenso para os usuários que solicitassem expressamente ao seu provedor de acesso.

A proposta sofre de profundos problemas jurídicos e práticos, como temos demonstrado em Hiperderecho. Em princípio, seria implementar um sistema estadual de censura prévia, em um conteúdo que em si é legal, como a pornografia. O projeto não visa regular o acesso à pornografia infantil, mas `a pornografia em geral.

A proposta sofre de profundos problemas jurídicos e práticos, como já demonstrado na Hiperderecho. Em princípio, seria implementar um sistema estatal de censura prévia sobre um conteúdo que em si é legal, como a pornografia. O projeto não visa regulamentar acesso a pornografia infantil, mas sim à pornografia em geral.

Além disso, a obrigação de solicitar explicitamente à empresa operadora a permissão para acessar conteúdo pornográfico criaria um registro nacional de consumidores de pornografia do qual ninguém iria querer fazer parte.

Na prática, o projeto também seria uma tarefa muito difícil de implementação e manutenção. O volume de sites que precisariam ser diariamente adicionados à lista negra levaria a erros, áreas cinzentas e casos nos quais essa disposição seria utilizada como censura política. O uso intensivo desse poder levaria ao bloqueio de serviços como Tumblr, Pinterest ou todo o tráfego de peer-to-peer no Peru. Portanto, a aceitação destas soluções abriria a porta para que em um futuro próximo busque implementar sistemas de filtragem semelhantes por infrações aos direitos de autor ou difamação.

Por outro lado, depois de uma primeira tentativa grosseira de alargar o rol de crimes informáticos existente no Peru, um novo projeto de lei assinado pelo Executivo quer incorporar um conjunto de novas infrações relacionadas com sistemas informáticos. A proposta baseia-se em parte na Convenção de Budapeste sobre Cibercrimes quando se propõe a incorporar crimes como o acesso ilegal, atentado contra a integridade dos dados ou sistemas informáticos ou o uso indevido de dispositivos, dentre outros. No entanto, em alguns casos, deixa de apontar exceções que se encontram presentes no texto internacional e em outros casos incorpora artigos inteiramente novos.

Este é o caso dos delitos de grooming, discriminação e interceptação telefônica. No primeiro, em firme cumprimento da tradição nacional em seguir a moda continental, propõe-se penalizar aqueles que “por meio de tecnologia da informação ou comunicação” fale uma criança menor de catorze anos para pedir material pornográfico ou propor atividades sexuais. Para o crime de discriminação, propõe-se ampliar a atual redação do Código Penal para incluir casos em que a infração aconteça “através de tecnologias de informação e comunicação.” Em outras palavras, propõe-se até três anos de prisão para qualquer um que, através de um artigo, comentário ou vídeo na Internet, discrimine ou estimule a discriminação. Por fim, o projeto de lei também visa aumentar as penas para o crime de interceptação telefônica para até seis anos e propõe agravantes para informações secretas ou que comprometam a defesa e soberania nacional.

Embora ambos os projetos de lei tenham sido elaborados por diferentes equipes e abordem diferentes problemas, é possível identificar alguns pontos em comum. Primeiro, compartilham uma visão desesperada do que significa a tecnologia e do papel do Estado sobre ela.

A sociedade adotou a abertura da tecnologia como uma oportunidade de inovar e melhorar a nossa qualidade de vida. Uma chance, certamente não sem riscos, mas cujos benefícios não podemos negar. Pelo contrário, nesses projetos, o nosso Estado parece ver na tecnologia uma profunda ameaça à sociedade, sendo imprescindível reprimi-la e para a qual nunca se poderá estar suficientemente protegido.

É por isso que esses projetos se esforçam para cobrir todas as hipóteses possíveis, para que nunca aconteçam na prática ou não tenhamos os meios adequados para detectá-los. Por isso acreditam que os projetos devam ser muito amplos ao invés de fazer algo muito específico. Esta abordagem de “precaução” para os usos da tecnologia pode vir a afetar não apenas os usuários, mas também as empresas, criadores e empresários que trabalham com as novas mídias.

O outro traço comum de ambos os projetos de lei é a sua alienação a respeito da realidade nacional e da capacidade institucional do Estado. Seu ponto de partida é sempre um documento internacional, uma iniciativa estrangeira que se pretende imitar ou necessidade política contra um problema de conjuntura.

Pior ainda, a pressa para se adaptar à Convenção de Budapeste é evitar a aprovação de um projeto de lei pior, como o proposto pela Comissão de Justiça no ano passado e ainda não retirado. No entanto, não se considera a quantidade de criminosos que fugiram do Estado por uma brecha legal, o sucesso que tiveram essas medidas em outros países ou o impacto que as medidas propostas terão sobre a liberdade de expressão, sobre a proteção de dados pessoais ou sobre para o desenvolvimento da pesquisa científica.

Esta desconexão com a realidade gera propostas tão insanas como um filtro nacional anti-pornografia, ou tão populistas e perigosas como amplar o crime de discriminação a áreas como a Internet. São proibições raras, porque elas são tão ambiciosas que todos nós sabemos que não serão efetivamente cumpridas, ou só vão valer seletivamente contra o que o Estado não pode permanecer em silêncio por outros meios. Essas proibições amplas e pricipiológicas são muito perigosas para uma sociedade livre e a tecnofobia de alguns dos nossos políticos está nos levando a considerá-las inocentes.

*Miguel Morachimo é Diretor da ONG Hiperderecho.
E-mail: miguel (at) hiperderecho.org