Argentina: Sobre biometria, o SIBIOS e práticas antigas de controle da população

by Digital Rights LAC on maio 7, 2015

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Neste ano entra em vigor, na Argentina, um D.N.I. (Documento Nacional de Identidade) único, que permitirá que todos os dados dos cidadãos argentinos integrem um único banco de dados de informação biométrica digitalizada. Por que isto é importante e por que esta informação deveria chamar nossa atenção?

Olhemos um pouco para trás … Qualquer pessoa argentina conhece de perto os múltiplos trâmites, complexos e não tanto, que exigem de nós a apresentação de nosso Documento Nacional de Identidade (D.N.I.). Isso é uma experiência diária: os trâmites bancários, a compra de passagens de longa distância e a entrada em edifícios públicos e privados requerem a apresentação de uma cédula que nos acompanha desde o ano de 1968, quando o Decreto-Lei N°. 17.671, de Juan Carlos Onganía, estabeleceu o D.N.I. como documento de identificação de todos os cidadãos. O nome do Decreto-Lei “De Identificação, Registro e Classificação do Potencial Humano Nacional”, é por demais ilustrativo do ideário de controle da população em que se sustentou –e se sustenta – o regime do registro das pessoas neste país.

Os documentos de identidade vigentes hoje na Argentina são dois, o já mencionado Documento Nacional de Identidade (D.N.I.) e o Passaporte, e ambos são expedidos pelo Estado Argentino.

O D.N.I. é o único instrumento de identificação pessoal, é obrigatório para todos os cidadãos e residentes, e não pode ser suprido por nenhum outro documento para efeitos legais. O atual formato em cartão plástico começou a ser expedido em 2009, com diversos elementos de segurança, que permitem garantir sua legitimidade, passou a ser totalmente confeccionado pelo Estado Argentino e incorporou tecnologias da informática: os dados biográficos e impressões digitais são armazenados em bancos de dados digitalizados e os processos de verificação dactiloscópica são realizados mediante ferramentas informatizadas. E também, segundo informação dada em junho de 2014, pelo Ministério do Interior e pelos meios de imprensa, o novo D.N.I. cartão, incorpora tecnologia que o torna “inteligente” e futuramente teria dois chips, um com os dados de identificação da pessoa e no outro, cada pessoa poderá incorporar os dados de seu histórico clínico, de contribuições sociais e previdenciários e do cartão SUBE, que opera como bilhete eletrônico para o sistema de transporte público.

Por outro lado, o passaporte, que passou a ser emitido de forma eletrônica, contém um chip que armazena os dados biométricos de seu titular para permitir sua utilização em sistemas de reconhecimento automatizados.
É demais dizer que, a evolução tecnológica que acabamos de resenhar, teria tido em vista a maior efetividade no sistema de identificação, registro e classificação do potencial humano argentino, criou maiores e novos riscos que os antigos sistemas analógicos não apresentavam, e que revelam a lógica sob a qual os avanços tecnológicos são receptados pela administração sem que haja uma análise prévia em relação ao impacto que este tipo de medidas poderia ter sobre o direito à privacidade dos cidadãos.

Chegado neste ponto, devemos dedicar algumas palavras ao Sistema Federal de Identificação Biométrica (SIBIOS), que é um novo serviço de identificação biométrica centralizado com cobertura nacional, que mesmo ainda não estando totalmente implementado, permitirá às agências de segurança fazer “referências cruzadas” de informação com dados biométricos e outros dados inicialmente coletados pelo Registro Nacional das Pessoas (RE.NA.PER). Foi criado em 2011, por decreto, e baseia-se em uma lógica de segurança e prevenção do crime. O SIBIOS foi criado para prestar um serviço de informação centralizado em relação aos registros patronímicos e biológicos individuais, com fins de contribuir para a comprovação idônea e oportuna em matéria de identificação de pessoas e rastreamentos, buscando otimizar a investigação científica de crimes e o apoio à função preventiva de segurança.

A principal fonte de informação do SIBIOS é o banco de dados do RENAPER. Isto significa que o SIBIOS opera uma mudança significativa no Registro Nacional das Pessoas e nos fins do Documento Nacional de Identidade, que agora passam a ser um elemento fundamental da política criminal do Estado Argentino. Antes, a relação entre as forças de segurança e o Registro Nacional das Pessoas era indireta: se a Polícia Federal queria acessar a informação do RENAPER deveria solicitar esse acesso. Agora, o banco de dados do RENAPER vai alimentar o banco de dados do SIBIOS, ao qual terão acesso como usuários, todas as forças de segurança federais (polícia, polícia militar, prefeitura e polícia aeroportuária), assim como a Direção Nacional de Migrações (DNM) e o próprio RENAPER. Além disso, o decreto criador do SIBIOS convida as Províncias a aderirem ao sistema, o que implica que cada uma das forças de segurança provinciais, também poderá ter acesso a um único banco de dados para realizar consultas biométricas em tempo real.

Então, o SIBIOS representa a consolidação de bancos de dados que estavam dispersos e a ampliação do acesso às forças de segurança do Estado. Em setembro de 2014, o SIBIOS contava com 13.200.000 registros de impressões digitais.

A partir da vigência deste documento único, e à medida que os documentos forem vencendo, o RENAPER coletará informação que alimentará de forma direta o banco de dados do SIBIOS. Isso significa que, em poucos anos, todos os cidadãos argentinos e residentes estarão em um banco de dados que poderá estabelecer controles do tipo “one-to-many”, quando assim requerido ao sistema, seja para o controle das impressões digitais ou o rosto dos cidadãos.

Um dos principais motivos de apreensão do sistema foi o vídeo que a Presidência da Nação criou para apresentar o SIBIOS para a sociedade. A lógica do vídeo era preocupante: garantia aos cidadãos de que, se nos conhecermos mais, nos cuidaremos melhor, postulando uma política de controle e vigilância massiva que se sustentava sobre tecnologia desenvolvida junto a Cuba e que incluiria a informação sobre a íris das pessoas, seu DNA e até sua forma de caminhar. O sistema seria ligado às câmeras de vigilância – em expansão nas grandes cidades– e permitiria a comparação dos rostos das pessoas com o banco de dados do SIBIOS.

Segundo opinião de especialistas, parecia que o vídeo foi realizado com uma lógica publicitária que não condiz com a realidade, pelo menos nos dias de hoje. Isto é, mesmo sabendo que existe a possibilidade de incluir mais dados no banco de dados, tanto sobre a íris das pessoas, sua forma de caminhar ou seu DNA, não haveria planos de que isso ocorresse. Mas, o preocupante é que, à medida que os desenvolvimentos tecnológicos avançam, estas possibilidades se tornam muito mais viáveis e, de acordo com o avanço das políticas de identificação biométrica na Argentina, não há motivos para pensar que não poderiam ser implementadas como outro desafio de atualizações tecnológicas com base nas políticas públicas de controle de longa data, assentadas e nunca questionadas.

Conforme o decreto, a informação do SIBIOS, vai se limitar às impressões digitais e ao rosto das pessoas, mas o Ministério da Segurança reconheceu que também processa a voz dos cidadãos e sua assinatura. Mesmo sabendo que a assinatura é obtida dos registros do RENAPER, é uma incógnita de onde o Estado obteria os registros de vozes dos cidadãos.

No entanto, a implementação da tecnologia que descrevemos ocorre em um contexto legal, que em matéria de proteção de dados pessoais, é um dos melhores da região. Contudo, tem duas fraquezas estruturais: um órgão de controle fraco e dependente do poder executivo; e uma excessiva permissibilidade para o Estado em relação ao armazenamento, tratamento e cessão de dados pessoais.

E aqui, respondemos a pergunta com a qual começamos este artigo… Isto nos leva a um cenário preocupante, dada a magnitude da coleta dos dados biométricos, a distorção na finalidade da coleta de tais dados, seu armazenamento em um banco de dados único com medidas de segurança, cuja extensão e eficácia – de acordo com os padrões internacionais, está claro – são desconhecidas, um órgão de controle de proteção de dados pessoais fraco, com pouco pessoal e baixo orçamento, e a maior permissibilidade conferida pela lei vigente ao Estado para manipular a discrição no que concerne a dados pessoais sob sua posse.

Este problemática requer uma revisão urgente à luz dos padrões de direitos humanos e de proteção de dados pessoais, que também implica questionar e rever antigas práticas de controle da população, que naturalizamos com o passar do tempo.

Nota: este artigo foi contribuído pela Associação de Direitos Civis (ADC). Para se aprofundar neste assunto, sugerimos a leitura dos seguintes textos, elaborados pela ADC e que podem ser encontrados no site www.adc.org: “Si nos conocemos más, nos cuidamos mejor. Informe sobre políticas de biometría en la Argentina” (“Se nos conhecermos mais, nos cuidamos melhor. Relatório sobre políticas de biometria na Argentina”) e “El estado recolector. Un estudio sobre la Argentina y los datos personales de los ciudadanos” (“O estado coletor. Um estudo sobre a Argentina e os dados pessoais dos cidadãos”).

Crédito da imagem: (CC: BY-SA) Alan Levine / Flickr