Agenda para o desenvolvimento na OMPI: etapa das bibliotecas e dos arquivos

by Digital Rights LAC on novembro 22, 2013

Bibliotecas CC (Glyn Lowe Photoworks) BY 2.0 - E

Por Luísa Fernanda Guzmán Mejía

Depois de aprovar o Tratado de Marrakesh, a Organização Mundial de Propriedade Intelectual (OMPI) deverá retomar a agenda para o desenvolvimento. Agora, a etapa deve ser dedicada à revisão das necessidades das bibliotecas e dos arquivos. Porém, haverá vontade política para fazê-lo?

As bibliotecas e os arquivos têm a missão de coletar, preservar e facilitar o acesso ao conhecimento e à informação. Sem dúvida, essas são formas de se garantirem direitos fundamentais como a liberdade de expressão e o acesso á informação. Tais instituições contribuem para melhorar a educação, a pesquisa e a inserção no mercado de trabalho, além de constituírem uma fonte de expansão das informações; também promovem a circulação de ideias e a liberdade de pensamento, a criatividade e a inovação. Por isso, formam um eixo central do ecossistema cultural.

Apesar de as bibliotecas investirem anualmente cerca de 24 bilhões de dólares em livros, revistas, audiovisuais e conteúdo digital, e muito embora atendam mais de 1.000 milhões de usuários no mundo, não há um cenário legal claro que as permita desempenhar as atividades básicas as quais compõem a sua finalidade. Em alguns países, por exemplo, o empréstimo público de materiais supõe a autorização prévia e expressa dos titulares dos direitos autorais. Isso coloca as bibliotecas em situação de vulnerabilidade ao mostrar que as atividades por elas realizadas são ilegais, eis que é irreal solicitar todas essas permissões.

A ausência de garantias para o exercício de direitos fundamentais dentro do sistema dos direitos autorais, assim como o são as exceções e as limitações, ameaça o cumprimento efetivo da missão das bibliotecas e dos arquivos, condena-os à obsolescência e os restringe a prestar seus serviços em uma sala de consulta tradicional, sem a possibilidade de explorar o potencial do ambiente digital. Essa situação resulta paradoxal, especialmente nos países em desenvolvimento, como a Colômbia, onde, em algumas regiões, as bibliotecas são a única forma de acesso aos livros.

De acordo com um estudo da OMPI realizado em 2008, 21 dos 184 Estados-membros dessa agência das Nações Unidas não contam com exceções e limitações para bibliotecas e arquivos, e apenas 27 consagram uma exceção geral a qual não é muito útil. Atualmente, a atividade dessas instituições praticamente depende da “boa vontade” de autores e titulares, os quais, na maioria dos países da região, abstiveram-se amavelmente de demandar pelos usos das obras que ali se realizam.

Essa situação será analisada precisamente no Comitê Permanente de Direitos Autorais e Direitos Conexos, órgão da OMPI encarregado dessas temáticas, o qual se reunirá entre 16 e 20 de dezembro, em Genebra.

À procura de uma solução

Em 2004, o Brasil e a Argentina propuseram a Agenda para o Desenvolvimento com o fim de integrar as Metas do Milênio das Nações Unidas em todas as atividades da OMPI. Nesse mesmo ano, o Chile propôs que a OMPI chegasse a um consenso sobre padrões mínimos para garantir que tanto as bibliotecas e os arquivos quanto o sistema educacional pudessem cumprir com a sua missão, e para que as pessoas com incapacidades pudessem exercer seus direitos. Isso se daria mediante exceções e limitações que deveriam ser contempladas em todas as legislações para que fosse restaurado o equilíbrio entre os direitos dos titulares e os direitos dos usuários.

Os interesses em jogo: as propostas e as posições sobre um instrumento internacional para bibliotecas e arquivos

Em 2008, sob o guarda-chuva da Agenda para o Desenvolvimento, Brasil, Chile, Nicarágua e Uruguai implantaram uma proposta de trabalho que seguia a iniciativa inicial do Chile. Depois,em 2001, esse plano de trabalho se concretizou por meio de duas propostas de regulação distintas:

(a) O projeto do Grupo Africano, que apresenta uma aproximação holística, a qual propõe um tratado para beneficiar tanto as pessoas com incapacidades quanto as instituições docentes e de pesquisa, as bibliotecas e os arquivos. No entanto, decidiu-se abordá-las separadamente na OMPI.
(b) Brasil, Equador e Uruguai apresentaram uma proposta complementar à do Grupo Africano que retomava as considerações de um documento gremial (fruto do trabalho da Federação Internacional de Associações de Bibliotecários e Bibliotecas – IFLA, em inglês –, o Conselho Internacional de Arquivos – ICA, em inglês –, a ElectronicInformation for Libraries – EIFL – e Innovarte) que o Brasil havia anteriormente apresentado à OMPI.

Essas propostas de tratado buscam essencialmente estabelecer um mínimo de garantias jurídicas dentro do sistema de direitos autorais para que as bibliotecas e os arquivos possam preservar as obras (incluindo por digitalização), reproduzir e fornecer cópias, facilitar o depósito legal, fazer empréstimos e importações paralelas; promover o uso transfronteiriço e o uso de obras órfãs, retiradas ou objeto de retrato; evitar as medidas tecnológicas de proteção, realizar traduções e deixar explícita a limitação de responsabilidade para essas entidades por atos ilegais que possam vir a cometer seus usuários.

Vale a pena reiterar que o Tratado de Marrakesh já soluciona uma das grandes dificuldades das bibliotecas e dos arquivos no momento de prestar seus serviços às pessoas com problemas visuais. Contudo, isso dependerá do fato de essas instituições serem consideradas como entidades autorizadas de implementação a nível local.

Apesar dos apelos para a assinatura do tratado, o certo é que a natureza do instrumento ainda não está definida. Isso reflete as tensões entre os países em desenvolvimento (a favor de um tratado) e os países desenvolvidos, os quais indubitavelmente parecem tender para a aprovação de um documento não vinculante (recomendação, lei modelo, etc.). Os Estados Unidos manifestaram sua hesitação para negociar um tratado dessa maneira, argumentando que, em sua legislação, já se encontram incorporadas exceções e limitações específicas para as bibliotecas, e que ademais conta com a doutrina do fair use.

Por sua vez, a indústria, encabeçada pela União Internacional dos Editores (IPA, em inglês) sustentou que as flexibilizações existentes não são apenas adequadas como também devidas, e que não existe necessidade para novas normas internacionais vinculantes que restrinjam a liberdade de desenvolvimento de exceções localmente adaptadas. Igualmente, o representante dessa organização (que, por vezes, trabalhou conjuntamente com a própria IFLA) afirmou que as circunstâncias da aprovação do Tratado de Marrakesh eram especiais e únicas, pois apresentava claras razões humanitárias, as quais, em sua concepção, não são extensíveis ao caso das bibliotecas e dos arquivos.

A próxima reunião na OMPI

A agenda para dezembro no Comitê da OMPI implica trabalhar sobre a proposta de tratado para a proteção dos organismos de radiodifusão e nas duas propostas sobre exceções e limitações (a das bibliotecas e a dos usos educativos). Por isso, estamos seguros de que a primeira urgência a ser tratada será a definição da agenda.

Os países do grupo B, isto é os países desenvolvidos (União Europeia e Estados Unidos) querem priorizar o tratado para a proteção dos organismos de radiodifusão. Precisamente, o grupo da Europa Central e dos Estados do Báltivo (CEBS) propôs um plano de trabalho para acelerar a conclusão dos debates a respeito do tema, com o objetivo de refinar o texto e com vistas a uma Conferência Diplomática em 2015. Em contrapartida, o grupo da Agência para o Desenvolvimento (Brasil) e o Grupo Africano não concordam com essa proposta e preferem dar prioridade às exceções e limitações. Contudo, é mais provável que a balança se incline para o primeiro lado.

Muitos consideram que a OMPI acabou se desgastando demasiadamente depois da negociação do Tratado de Marrakesh e, portanto, necessitará de fôlego para retomar o debate acerca dos temas da Agenda para o Desenvolvimento, mais polêmico entre os membros por tentar fortalecer um sistema de garantias para os usuários. É provável que utilizem o tratado dos organismos de radiodifusão para gerar esse espaço.

A Fundação Karisma assistirá à sessão do Comitê da OMPI para consolidar a participação da sociedade civil na região e para monitorar o posicionamento do governo colombiano, o qual, a contrário de países como Argentina, Brasil, Chile, Equador e Uruguai, não tem sido muito ativo no que tange a esses temas tão relevantes.

Advogada e Pesquisadora do grupo de Direito, Internet e Sociedade da Fundação Karisma.