Vigilância, Direitos Humanos e o papel dos Estados: o discurso de Rousseff e o silêncio de Peña Nieto

by Digital Rights LAC on outubro 18, 2013

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Por Renata Avila

O Brasil proporá perante a ONU uma iniciativa para um Marco Civil da Internet Internacional. Outros líderes latino-americanos têm unido esforços diplomáticos para garantir o respeito ao direito internacional e aos direitos humanos, uma rara ocasião na qual as agendas política, diplomática e de direitos humanos encontram convergência em tantos países ao mesmo tempo. Poderá a região liberar a mudança necessária para prevenir o avanço da vigilância massiva e total?

Vulnerabilidade dos dados de cidadãos estrangeiros e diplomacia como única resposta (até o presente momento)

Desde abril de 2013, uma série de revelações sobre a vigilância massiva dos EUA, encoberta pela NSA, tem sacudido as agendas políticas e diplomáticas da região latino-americana. No mês de setembro de 2013, o conflito atingiu um nível ainda maior.

A publicação de evidências acerca de práticas de espionagem dirigidas tanto aos chefes de governo do México e do Brasil, quanto a setores estratégicos, como o energético-petrolífero, incluindo ao Ministério de Minas e Energia do Brasil, mesmo com a cumplicidade de seu equivalente no Canadá, fez com que a resposta dos mandatários dos referidos países se elevasse ao nível mais alto em termos de política e de diplomacia, seja no que tange a mecanismos regionais, seja no que diz respeito a mecanismos internacionais.

Resoluções do MERCOSUL, UNASUL, ALBA, levadas, meses antes, ao Conselho de Segurança e ao Secretário Geral das Nações Unidas, faziam um chamado em nome da defesa da privacidade, da soberania e da normativa de direito internacional público que proíbe explicitamente condutas que ameacem o gozo e o exercício dos direitos humanos; porém, os acontecimentos de setembro abrem margem a ações concretas que poderiam levar a ações legais e até mesmo a sanções aos governos envolvidos, se fosse confirmado que atos concretos de espionagem foram executados pela NSA dos Estados Unidos, dirigidos a setores estratégicos do Brasil, assim como às suas máximas autoridades de forma exaustiva, monitorando cada comunicação eletrônica da presidente eleita do Brasil, Dilma Rousseff e do então candidato à presidência do México, Enrique Peña Nieto.

A Carta da Organização dos Estados Americanos estabelece que o direito internacional deve ser norma de conduta dos Estados em suas relações recíprocas, assim como aponta que a boa fé deve reger as relações interestatais. Estados Unidos e Canadá são Estados membros de dita organização, a qual ainda não decidiu fazer da questão um ponto central de sua agenda para os próximos meses. Como tal conduta contraria os princípios da referida organização, isso poderia implicar a suspensão desses países.

Em seu discurso ante a Assembleia Geral das Nações Unidas, Rousseff reagiu de forma severa e contundente, qualificando os atos de vigilância e de espionagem massivos como ofensa à legislação internacional e aos princípios que devem reger as relações entre os Estados. Também afirmou que os atos em questão constituem um grave caso de violação de direitos civis e de desrespeito á soberania nacional, descrevendo-os como um atentado contra a liberdade de expressão, a democracia e as relações entre as nações.

Oportunidade para diálogo e ação conjunta

Do outro lado, estão os cidadãos latino-americanos que, mesmo tendo recebido com simpatia e solidariedade a força com a qual alguns governos defenderam seus direitos de não serem vigiados por organismos de inteligência estrangeiros, reservam essa prerrogativa para executarem atos de vigilância doméstica massiva. Baixos padrões de proteção à privacidade em cada país e débeis ou inexistentes autoridades de proteção de dados são problemas pendentes nas agendas nacionais. Enquanto as autoridades vão contra a vigilância massiva empreendida por um terceiro Estado, seus cidadãos estão pedindo que as mesmas restrições à vigilância massiva e indiscriminada sejam aplicadas em suas casas.

A compreensão sem precedentes dos efeitos ameaçadores que a vigilância traz a todos gerou um efeito positivo: as propostas de proteção à privacidade e as petições para uma menor prestação de contas dos organismos de inteligência são escutadas pelos poderes executivos e pelos parlamentos regionais. Os “Princípios Internacionais sobre a Aplicação dos Direitos Humanos à Vigilância das Comunicações”, recentemente apresentados perante o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, e sua ampla recepção pelos países membros do mesmo são um exemplo da oportunidade de promover os mais altos padrões na região. O estabelecimento de grupos de trabalho para estudar o impacto e as possíveis soluções à vigilância massiva, recém-instalados na ALBA, no MERCOSUL e no Conselho de Segurança da UNASUL, oferece mais uma oportunidade de reunir os especialistas internacionais, promotores de direitos humanos, a comunidade técnica e a sociedade civil para desenvolver o melhor marco possível. Existe hoje vontade política, e esta pode desaparecer assim que as notícias pararem de circular nos jornais.

A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, anunciou através de sua conta no Twitter a proposta de um Marco Civil Internacional para a Internet, buscando resguardar os direitos de todos os cidadãos ao redor do mundo. Tal proposta seria enviada à ONU. Também é esperada a aprovação de uma nova versão do Marco Civil e sua incorporação á legislação brasileira. Essa versão ampliaria as garantias à privacidade dos cidadãos. Ao que parece, o Brasil está se consolidando como o país que liderará as alternativas, a resposta global, a guerra contra a privacidade dos cidadãos.

O obstáculo a essas iniciativas regionais pode ser o bloqueio por parte de países favoráveis ao modelo de vigilância, que poderiam contar com acordos similares com a NSA e com a DEA. Isso se evidencia no silêncio de Peña Nieto e na falta de uma resposta dura ante as revelações de espionagem direta a países dependentes de ajuda militar e policial para combater a “guerra contra as drogas”. São precisamente os cidadãos desses países que se beneficiariam com a aprovação de um marco regional ou até mundial de proteção contra a vigilância massiva, arbitrária, que não presta contas a ninguém e que impunemente viola a normativa internacional e local. Para grupos vulneráveis, como jornalistas e ativistas do México, de Honduras e da Colômbia, a vigilância e a proteção contra ela são assuntos de vida ou morte.

A jovem e pacífica região, em sua maior parte, conta com os mais favoráveis marcos legais para a criptografia a nível mundial, e tem pela frente a possibilidade de propor aos seus líderes uma aposta em uma Internet robusta, que garanta a todos o máximo exercício de seus direitos, assim como o maior potencial econômico e tecnológico possível, que acabará por implicar um maior e melhor desenvolvimento humano, inclusive para os setores marginais. É, pois, momento de passar do protesto à proposta, e da proposta à ação.

[Este trabalho foi realizado como parte do Cyber Stewards Network, com o apoio de uma bolsa de estudos concedida pelo International Development Research Centre, Ottawa, Canadá]