Trolls e acesso a direitos: o caso #AxanDecide
by Digital Rights LAC on outubro 27, 2015
Ao reivindicar o direito à educação de seu filho, uma mãe encontrou-se temporariamente desalojada e ameaçada de morte. E por causa dos trolls. Sim, é isso mesmo que você leu.
Por Catalina Ruiz-Navarro (@catalinapordios)
Axan é uma criança de quatro anos que vive na cidade de Hermosillo, no estado de Sonora, no México e não pode estudar. Embora existam no México milhares de razões que impedem o acesso à educação das crianças, a Axan foi negado o acesso à educação pelo motivo mais estúpido de todos: ele possui cabelos longos. Axan não quer cortar seu cabelo. É uma das primeiras decisões que toma sobre o seu corpo, como conta sua mãe, A. de la Maza, que o está ensinando a importância da autonomia corporal.
Embora a Constituição garanta a Axan seu direito à educação, ao livre desenvolvimento da personalidade e não-discriminação por gênero, o regulamento da escola converte-se em algo que não é apenas injusto, mas perigoso. Quantas instituições privadas violam os direitos humanos das pessoas com base no argumento de que elas têm as suas próprias regras? Por que costumes ou regras arbitrárias de uma escola parecem mais importantes que os direitos humanos?
Com essas questões em mente, a mãe de Axan foi aos órgãos competentes: o Conselho Nacional para Prevenir a Discriminação (Conapred), a Comissão Executiva de Atenção a Vítimas (CEAV) e a Secretaria de Educação e Cultura do Estado de Sonora. Ela também fez uma petição na plataforma Change. A discussão foi gerada e vários artigos sobre o assunto foram escritos, como Por escuelas libres de estereotipos de género e Por sociedades libres de estereotipos de género no blog de Estefania Vela no El Universal; uma entrevista com o mãe de Axan na Vice, Flashback 80’s y Axan FAQ e El espejo de Axan no Animal Político e minha coluna em Sin Embargo, entre outros.
No meio de tudo isso, começou a trollagem.
Em primeiro lugar, as pessoas não conseguem entender por que a mãe não simplesmente força o filho a seguir algumas regras idiotas. A paixão com que as pessoas começam a defender a obrigação de seguir regras absurdas é brutal.
Aparentemente, se você assume uma posição crítica, o estado mexicano faz você desaparecer: é isso que se pode entender a partir da quantidade de tweets que vinculam sobre não cortar o cabelo e o trágico destino dos 43 estudantes de Ayotzinapa que estão desaparecidos a um ano. A mensagem enviada com o desaparecimento dos estudantes de Ayotzinapa foi clara e distinta: obedecer ou desaparecer. As pessoas se lembram da mãe de Axan.
Em seguida, descobriram que o lar de Axan é monoparental, ou seja, sua mãe decidiu tê-lo sozinha, e para maior horror, que A. de la Maza é lésbica. Assim, os internautas começaram a “denunciar” que a mãe de Axan queria “convertê-lo” em uma mulher, “forçando-o” a usar cabelos longos. Eles começaram a procurar fotos de Axan em redes sociais, escolhendo aquelas em que utiliza um broche para o cabelo para dizer que o “vestem de menina” (mesmo usando calça e camisa). Ser mulher ou ser gay foi reduzido ao uso de um broche em sua cabeça.
Em seguida, o troll evoluiu para ameaças. Ameaças de “estupro corretivo” a mãe de Axan, nem mais nem menos.
As ameaças de estupro são estendidas às mulheres que escreveram sobre o caso, como Estefania Vela e eu, e a advogada encarregada do caso de Axan, Aleh Ordóñez.
Posteriormente, as ameaças incluíam imagens de armas.
Incluindo a foto de uma arma de fogo junto a um papel escrito à mão apontando para a mãe de Axan. Depois de pesquisar as imagens na Internet, parece que foram criadas especialmente para essas ameaças, elas não são reutilizadas, ou coletadas a partir das contas de fotos de algum narcotraficante ou algo assim.
Há pouco tempo o assunto deixou de ser um problema de dissenso na Internet ou um debate sobre as normas escolares. Agora, há cidadãos mexicanos que usam redes sociais para ameaçar matar uma mulher que exige o direito à educação de seu filho. As ameaças se estendem a todas as pessoas que apoiam a mãe, que, não surpreendentemente, são também mulheres. O pior de tudo é que as ameaças são para “proteger” Axan de sua própria mãe.
O presidente da Comissão Estadual de Direitos Humanos (CEDH), de Sonora, Raul Ramirez, e já disse, como é evidente, a escola está obrigada a receber Axan, e com cabelo comprido! “Sim, é uma discriminação, porque mesmo que se assinem contratos, direitos humanos são inalienáveis”, disse Ramírez. No entanto, as declarações do Presidente da CEDH não restauram ou garantem os direitos de Axan, cuja situação se tornou ainda mais complexa:
Diante de ameaças de morte e estupro corretivo, e os rumores persistentes de que “vamos apresentar um relatório ao DIF – Desenvolvimento Integral da Família (órgão mexicano de assistência social) para que removam seu filho de você”, A. de la Maza teve que abandonar temporariamente Hermosillo. Eles não podem nem querem se mudar para outro lugar porque não se trata de fugir para um lugar onde se permite exercer os seus direitos: trata-se de garantir os direitos outorgados pela Constituição a todas as crianças no México. Então, hoje Axan e sua mãe não podem estar aqui nem lá, estão em situação temporária de deslocamento forçado pela misoginia na Internet. Tudo para defender o direito à educação e ao livre desenvolvimento da personalidade de seu filho.
Tanto na internet como nos espaços tridimensionais é mal visto e é ameaçador que as mulheres falem em público e defendam direitos. Mulheres estão autorizadas a falar em público para serem vítimas, mas não para tomarem posições críticas na sociedade. As mulheres que incentivam outras mulheres a falar em voz alta são duplamente perigosas. Então, uma mãe que se mobiliza para exigir o direito à educação de seu filho vai ser bem recebida, desde que ela faça o papel de vítima, e sem questionar a sociedade.
Misoginia, trolls e discurso de ódio
A misoginia na Internet tem uma forma bem definida: há uma crueldade especial nos ataques contra as mulheres e rapidamente as ameaças são direcionadas para as famílias das mulheres e/ou tem conteúdo sexual, por exemplo, ameaças de estupro. Também começam a atacar a moralidade sexual das mulheres, ou seja, esta mulher não pode falar, porque ela é prostituta, promíscua, frígida ou lésbica (porque não há nenhuma maneira de vencer). Há também ataques contra a capacidade de inteligência e raciocínio das mulheres, então somos brutas, loucas, não entendemos, “não vemos mais além.”
Esses elementos são persistentes em todos os ataques a mulheres na internet (aqui e aqui você pode ver sobre os outros casos que escrevi, e aqui um artigo da Fundação Karisma sobre o mesmo tema) e são um problema real, porque a misoginia na internet viola efetivamente a nossa liberdade de expressão e nosso acesso a direitos. Como acabou de acontecer com Axan.
Como regular o discurso de ódio dos trolls? Uma ameaça de assassinato ou de estupro corretivo não faz parte da liberdade de expressão: é um discurso de ódio. Este é um discurso que ataca uma pessoa ou grupo com base em atributos como o gênero ou origem ética e que incitam medidas violentas contra tais grupos ou pessoa, um discurso que, claramente não está protegido. Caso alguém esteja se perguntando como diferenciar um insulto qualquer de um discurso de ódio, há um teste simples: se você estiver usando para silenciar alguém que exige direitos, não é liberdade de expressão.
Por outro lado, não temos mecanismos eficazes; nenhuma maneira de avaliar essas ameaças. Como o discurso de ódio é emocional e irracional, não há nenhuma maneira de saber qual destes ataques permanecerá em ameaças verbais e quais pretendem estuprar ou matar. A julgar pelas imagens de armas, o mínimo que podemos supor é que eles têm a intenção e os meios para fazê-lo. Talvez nunca venhamos a conhecê-los fisicamente, mas basta apenas a sensação de insegurança e ansiedade que provocam para que cada mulher pense duas vezes antes de dizer algo na internet, e vai pensar três antes de reivindicar os seus direitos. O dano psicológico produzido pelos ataques de misoginia na Internet não se encaixa em nenhuma equação de risco.
Em 24 de setembro, a ONU divulgou um relatório sobre a violência online contra meninas e mulheres. O relatório fala sobre a misoginia na internet como uma pandemia. Observa que, apesar do crescente número de vítimas mulheres, apenas 26% dos 86 países estão tomando medidas. Mostra que 73% das mulheres disseram ter sofrido violência online, que em muitos países as mulheres preferem não reclamar por medo de repercussões sociais e a ciberviolência impõe uma carga emocional adicional que consome tempo e recursos financeiros.
Certamente, os mecanismos legais e penais são insuficientes para controlar o problema dos trolls, por isso, é importante ter uma abordagem. Talvez o mais difícil de tudo é que os ataques de ciberviolência não são levadas a sério, como se o que acontecesse na internet não fizesse parte da “vida real”. É ridículo acreditar que uma ameaça de assassinato ou estupro corretivo se resolva com um “ignore-os, as pessoas são loucas”, e ainda assim esta é muitas vezes a reação da polícia e juízes.
“A liberdade de expressão é um direito fundamental e sua preservação exige vigilância de todos”, diz o relatório da ONU, e isso significa que cada internauta tem uma responsabilidade partilhada com os casos de ciberviolência. Por exemplo, os usuários do Twitter têm uma responsabilidade ética de relatar as contas de onde vieram os ataques.
Mas isso não é suficiente. Só podemos usar o incrível potencial da Internet para defender os nossos direitos, de forma eficaz, se, juntos, construirmos um espaço onde as pessoas possam exigir os seus direitos fundamentais, sem serem perseguidas. Para isso, temos de perceber que os perseguidores não estão limitados a: contas anônimas do Twitter, identidades abstratas. Eles são, no entanto, pessoas muito reais, com uma violência muito real que à menor provocação desencadeiam sua selvageria. Online e offline, precisamos de educação, sensibilidade, discussão, para lidar com toda essa raiva.
Imagem: (CC-BY) Justin Taylor / Flickr