Projeto de Lei 215/2015, infanticídio aos recém-nascidos direitos digitais no Brasil

by Digital Rights LAC on outubro 27, 2015

Marcocivilcamara

Ainda está fresca na memória de todos brasileiros, bem como de toda a comunidade internacional de governança da internet, a cena em que a Presidenta do Brasil sancionava a Lei n° 12.965/2014, no dia 23 de abril de 2014, no palco da NetMundial. Mais conhecida como Marco Civil da Internet/MCI, essa lei foi um movimento reacionário às propostas regulatórias da internet sob um viés criminal que ganhou força nos idos de 2007.

Por Bruno Ricardo Bioni*

Ao invés de se apostar em uma dinâmica regulatória que freasse a participação social na rede por meio da lente punitiva do direito criminal, optou-se em assegurar direitos e garantias dos usuários para incentivar o seu uso.

Para além do seu conteúdo normativo, o MCI foi, também, singular em razão do seu processo de formulação. Houve um engajamento da sociedade que culminou em seu famoso processo colaborativo de elaboração por meio uma plataforma online amplamente difundida a acessada pela sociedade. Demandaram-se 07 (sete) anos entre a articulação e elaboração do MCI até a sua aprovação no Congresso Nacional; estando há pouco mais de 01 (um) em vigência, toda essa experiência vitoriosa e aplaudida internacionalmente da Constituição da Internet brasileira pode restar comprometida.

Em pauta no Congresso brasileiro está uma agenda que desconsidera esse importante capítulo da democracia nacional. Já aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei n° 215/2015 vai de encontro com a própria história de concepção do MCI e seus pilares regulatórios, propondo-se a alteração de alguns de seus dispositivos.

Primeiro, retoma-se o discurso punitivo como estratégia regulatória. Tal iniciativa legislativa não só mantém uma criticável política criminal de delitos contra honra, como procura, ainda, torná-la mais rígida com o aumento das penas desses crimes quando praticados pela internet. Na prática, essa moldura regulatória punitiva pode ter efeitos colaterais sobre a liberdade de expressão ao provocar um efeito inibidor de opiniões críticas que possam atrair tais tipos penais contra honra, cujas variações da pena são um fator adicional desestimulador à livre manifestação dessa natureza. Não por outro motivo, documentos e recomendações internacionais indicam que tais atos ilícitos deveriam ser deslocados para a esfera civil.

Segundo, o projeto de lei prevê, ainda, de maneira hipertrofiada o chamado direito ao esquecimento, vez que ele é alargado em relação a sua concepção original. Não se prevê a desindexação de um conteúdo, mas a sua completa indisponibilização e, principalmente, negligencia-se a disposição de critérios para a sua aplicação ponderada. O direito ao esquecimento sempre envolveu um exame casuístico a respeito da utilidade da informação para que não se estrangule o direito à informação. No entanto, tal iniciativa legislativa atropela esse debate, uma vez que o único critério estabelecido é a existência de uma suposta informação ofensiva à honra. Não se elenca, por exemplo, outros critérios como o valor histórico e público da informação a excepcionar a aplicação do direito ao esquecimento.

Em razão de tal racionalidade individualista e simplificadora, um político corrupto poderá, por exemplo, pleitear o “esquecimento” de tais informações ofensivas a sua honra, em que pese o seu indiscutível interesse público. A tutela da honra é, portanto, mais uma vez superdimensionada, ante a ausência de critérios que rivalizem a sua proteção frente à liberdade de expressão e o acesso à informação e que, em última análise, poderia determinar a manutenção/disponibilização de um conteúdo na internet.

Terceiro e último, o projeto de lei acaba por ampliar a definição de dados cadastrais contida no MCI que é uma exceção à regra da necessidade de ordem judicial para o acesso a tais dados pessoais. Além, de qualificação pessoal, endereço e filiação, alarga-se tal hipótese para incluir telefone, CPF e conta de e-mail, exigindo-se, inclusive, que todos os provedores de aplicação coletem tais dados. Na prática, torna-se obrigatório o cadastro dos usuários para a sua navegação na internet. Tamanha intrusão foi, dentre outros motivos, a razão pela qual tal iniciativa legislativa foi apelidada de “PL Espião”. ´

O mais problemático é que se desconsidera, por completo, a pendência de regulamentação do MCI, através de decreto presidencial, que detalhará esse regime de exceção ao acesso de dados pessoais sem escrutínio judicial. Tal como em seu processo de elaboração, a regulamentação do MCI submeteu-se à consulta pública, sendo que as suas contribuições procuram, na contramão do proposto pelo “PL Espião”, trazer maiores garantias à privacidade do usuário, limitando-se o próprio escopo de dados cadastrais e definindo medidas adicionais para a sua requisição e retenção.

Com o “PL Espião”, retoma-se uma agenda regulatória punitiva da internet que parecia ter ficado no passado e que foi o elemento propulsor para a articulação de uma regulamentação que fosse focada no âmbito civil. O mais preocupante é notar que o MCI está em vigência há pouco mais de 01 (um) ano, pendendo, inclusive, de regulação por decreto presidencial para produzir todo seu impacto regulatório.

Mesmo assim, o legislativo brasileiro pretende modificar essa arquitetura jurídica, o que propõe em contradição aos seus pilares regulatórios, como a liberdade de expressão, o acesso à informação e à privacidade. O produto cívico da sociedade brasileira gestado por 07 (sete) anos e que acabou de completar o seu primeiro aniversário de vida pode ter a sua história abreviada, já havendo mobilizações da sociedade civil, da academia e do próprio Comitê Gestor da Internet/CGI do Brasil contra tal infanticídio. Passado, presente e futuro da regulação da internet confundem-se, colocando-se em risco os recém-nascidos direitos digitais no Brasil.

*Advogado e Pesquisador do Grupo de Políticas Públicas para o Acesso à Informação/GPoPAI da Universidade de São Paulo (Projeto de Pesquisa Vigilância e Privacidade).