Privacidade e vigilância para a América Latina

by Digital Rights LAC on dezembro 19, 2014

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De acordo com o avanço das tecnologias, a pergunta-chave em nossos países é como as práticas de vigilância sem controle continuam afetando o direito à privacidade de nossa população?

 

Por Claudio Ruiz*, Derechos Digitales.

As revelações de Edward Snowden desencadearam um escândalo mundial, pois colocou em evidência como a tecnologia digital – fonte de inúmeras utopias até pouco tempo atrás – tem um lado escuro e pouco transparente: a disponibilização da vigilância para a população mundial pelos Estados em colaboração com as empresas privadas. Mas, neste contexto mundial, qual é a situação dos países da América Latina e por que deveríamos dar uma atenção especial?

Originalmente, entendia-se a privacidade como um direito de estar e permanecer sozinho, ideia originária de um antigo artigo de Louis Brandeis e Samuel Warren, que tem sido muito influente para configurar este right to privacy no sistema norte-americano. Na América Latina, a evolução do conceito de vida privada teve, desde o início, uma conotação muitíssimo mais ampla, tendo reconhecimento constitucional em boa parte dos países da região. Adicionalmente, a ideia de vida privada tem evoluído de acordo com a evolução das tecnologias, as quais se tornaram cada vez mais definitórias de seus limites, graças ao tratamento informatizado de nossos dados pessoais. O desenvolvimento da informática em meados do século XX permitiu criar potentes ferramentas para tratar e processar a informação, permitindo à medicina conhecer dados agregados de saúde de grandes segmentos da população e controlar pandemias, mas, deste modo, tanto o Estado, como os particulares constroem padrões e perfis de comportamento sem o consentimento das pessoas.

A privacidade então, já não pode ser reduzida a um direito ao espaço privado, mas como um espaço onde todos possam tomar parte ativa do controle da informação existente sobre os mesmos; uma manifestação jurídica do respeito e proteção devido a cada pessoa, protegendo a dignidade e liberdade humana, por meio do reconhecimento de seu titular a um poder de controle sobre sua autonomia pessoal.

O Sistema Interamericano não ficou alheio a esta construção. Sem ir além, o Relatório 2013 da Relatoria Especial para a Liberdade de Expressão informa a riqueza do conceito, indicando que o direito à privacidade se referia àquela esfera alheia às ingerências arbitrárias do Estado e terceiros; ao direito a se governar, ou seja, ao desenvolvimento da autonomia pessoal e de cada projeto individual; ao sigilo de dados e informação de espaços reservados; e ao direito à própria imagem. Mesmo sabendo que há um longo percurso a percorrer, particularmente devido ao agressivo avanço das tecnologias digitais e de seus impactos no sistema de direitos humanos, esta categorização é um bom ponto de partida para a construção de uma doutrina sofisticada de proteção destes direitos, beirando a tradição do Sistema Interamericano.

A rápida evolução das tecnologias digitais tem feito com que estas dimensões do direito à privacidade sejam vistas em constante ameaça pelo mundo inteiro. Preocupantemente, a América Latina não só não é exceção, mas como em outras ocasiões, inclusive, é um campo exploratório para novas formas de vigilância. Assim, o Relatório 2014 do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, Navi Pillay, trata especificamente sobre a privacidade na era digital, fazendo especial menção aos problemas derivados da vigilância estatal e sua falta de transparência:

“A complexidade dos desafios para o direito à privacidade nesta era digital, em rápida e dramática evolução, vai precisar de um escrutínio e diálogo constantes entre todos os setores chave, incluídos os governos, sociedade civil, especialistas cientistas e técnicos, o setor empresarial, acadêmicos e especialistas em direitos humanos”.Adicionalmente, em nível internacional é particularmente importante a sentença do Tribunal de Justiça da União Europeia, que sustentou que as normas de retenção de dados de prestadores de serviços de Internet não são necessárias, nem proporcionais, isto é, que não cumprem com os padrões de respeito aos direitos fundamentais. Não obstante esta decisão, que provocou uma profunda reflexão na Europa em relação a estes tipos de práticas, na América Latina as normas de
retenção de dados são regra geral e não exceção. A partir da ótica do Sistema Interamericano, os países da região deveriam evoluir na harmonização normativa destas práticas à luz dos critérios dos direitos humanos.

Infelizmente, também são regras gerais e não exceções, as diversas práticas que podemos visualizar ao longo de toda a América Latina:

-No México, a última reforma da lei de telecomunicações incluiu políticas explícitas de geolocalização de telefones celulares sem precisar de ordem judicial.
-Na Colômbia, revelou-se uma série de interceptações de comunicações no marco do processo de paz sem nenhuma garantia judicial.
-Na Argentina, através do Sistema Federal de Identificação Biométrica para a Segurança (SIBIOS), leva-se a cabo o que provavelmente é o sistema de vigilância estatal mais agressivo da região baseado em identificação biométrica.
-E, no Brasil, os protestos emergenciais pela organização da Copa do Mundo, deu passagem a um reforçamento técnico dos serviços de inteligência e policiais para enfrentá-las.

Este exemplo é particularmente importante, dado que menciona a conexão entre a proteção de informação pessoal, ou pelo menos, de garantias processuais e de transparência, com outros direitos fundamentais, como o direito ao protesto. De alguma maneira, o exercício do direito ao protesto no século XXI está estreitamente ligado à proteção da privacidade na Internet.

O desenvolvimento de tecnologias digitais supôs uma nova oportunidade para a massificação de práticas de vigilância na América Latina. Não obstante ter sofrido durante décadas a repressão de Estados totalitários, que incluía um forte componente de vigilância de seus agentes, não parece uma tarefa simples para nossas sociedades fazerem a conexão entre a referida realidade e o exercício dos direitos humanos por meio das tecnologias digitais. As revelações de Edward Snowden, que mencionam, além de uma estreita colaboração entre agências de segurança e empresas de tecnologia, deveriam ser um alerta para a construção de um modelo normativo que respeite os direitos humanos no ambiente online. Isto supõe um esforço a partir das políticas públicas, mas ao mesmo tempo, um esforço para sistematizar práticas e realidades locais e assim poder entender estas dinâmicas e oferecer soluções coerentes e com garantias.

*Claudio Ruiz é diretor executivo da Derechos Digitales.