No meu nome não! A proteção das mulheres como argumento de censura
by Digital Rights LAC on outubro 29, 2014
Por Beatriz Busaniche, Fundação Vía Libre
Naquilo que já parece um fato clássico desde a massificação da internet, mais uma vez as boas intenções servem de justificativa para projetos que ameaçam direitos e garantias constitucionais. O projeto de lei de eliminação de mensagens que incentivem a exploração sexual e o tráfico de pessoas apresentado na Argentina, é um exemplo típico deste. Sob a vocação de por fim a situações de tráfico e exploração sexual, propõe-se um projeto inútil para esse objetivo e perigoso para a liberdade de expressão.
O projeto, assinado entre outros pelo Deputado Andrés Larroque e vários outros legisladores do partido de governo sob o expediente 6943-D-2013, obteve parecer de maioria sem alterações na Comissão de Comunicações e Informática na Câmara de Deputados na reunião de 26 de agosto deste ano.
Mesmo sabendo que a luta contra o tráfico de pessoas em geral, e a exploração sexual em particular, são objetivos legítimos, o projeto vai mais além disso. Em seu artigo estabelece a proibição de “todos os anúncios, publicações, publicidades ou qualquer outro tipo de mensagens que promovam a oferta sexual ou tornem explícita ou implícita referência à solicitação de pessoas destinadas ao comércio sexual, através de qualquer meio de comunicação”, incluindo os sites da Internet.
Note-se a amplitude da definição, já que a proibição abrange todas as comunicações, “explícitas ou implícitas”, que tenham relação com uma oferta sexual, atividade que não és ilegal na Argentina. Umas 6 mil mulheres, agrupadas na Associação de Meretrizes Argentinas (AMMAR), fazem deste tipo de oferta seu meio de vida e reivindicam como trabalhadoras sexuais. 6 de cada 10 pessoas que participaram da pesquisa realizada pela Associação de Travestis, Transexuais e Transgênero da Argentina em 2012, declararam estar ligadas ao trabalho sexual atualmente. Estas pessoas se encontram em situações particularmente vulneráveis e este tipo de legislação as deixa em um lugar de maior desproteção e precariedade, já que as margina da possibilidade de oferecer seus serviços de maneira autônoma e independente dos exploradores que o projeto busca perseguir.
O projeto amplia o objeto da lei sobre “Prevenção e sanção do tráfico de pessoas e assistência a suas vítimas” (Lei 26364), já que a norma não proíbe os anúncios que uma pessoa maior de idade realizar ofertando serviços sexuais, em clara contradição com os princípios constitucionais argentinos, que estabelecem que “nenhum habitante da Nação será obrigado a fazer o que não manda a lei, nem privado do que ela não proíbe”. Este princípio de legalidade de é fundamental em um estado de direito.
A segunda parte do artigo 2 do projeto expressa, que “ficam compreendidos neste regime todos aqueles anúncios que fazendo referência a outras atividades lícitas, tenham como finalidade a realização de alguma das atividades indicadas no parágrafo acima.” Tal nível de proibição de anúncios e comunicações sobre atividades lícitas avança sobre os princípios consagrados na Constituição.
O procedimento aplicável da legislação proposta implica, que “a instrução e a aplicação de sanções por infringir disposições da presente lei serão realizadas pela autoridade aplicável, de acordo com a regulamentação que o Poder Executivo Nacional promulgue para tal efeito” (art. 5).
O artigo 6, por sua parte, faculta à autoridade aplicável requerer a eliminação e bloqueio de acesso aos anúncios, publicações, publicidades ou qualquer outro tipo de mensagens ou conteúdos enumerados no artigo 2, veiculados através de qualquer meio de comunicação ou tecnologia da informação e comunicação, de conformidade com o procedimento promulgado pelo PEN. Isto é, a norma faculta à autoridade aplicável a bloquear conteúdos não necessariamente ilícitos e impor multas aos meios de comunicação sem mediar ordem judicial.
Esta iniciativa segue a mesma linha que outro projeto apresentado recentemente no Senado, que estabelecia o filtro generalizado de sites de material pornográfico para adultos (http://www.infotechnology.com/internet/Presentan-un-proyecto-de-ley-para-facilitar-el-bloqueo-de-sitios-de-Internet-en-la-Argentina-20140714-0002.html). Ambos os projetos se embandeiram em causas nobres: a luta contra o tráfico de pessoas e a exploração sexual por um lado, e a proteção dos menores por outro, mas propõem sistemas de restrição, controle e censura impróprios do Estado de Direito.
A oferta sexual não é sinônimo de exploração sexual, nem de tráfico de pessoas. A luta contra este flagelo merece muito mais do que isto e requer um estudo sério das ações a seguir. Dados do Ministério Público Fiscal, consignados no parecer de minoria, indicam que a incidência de internet na captação de vítimas de tráfico é muito baixa. Apenas 5% do recrutamento de pessoas para redes de tráfico é atribuível à publicidade gráfica ou a tecnologias de comunicação (internet, telefone, chat etc.).
A luta contra o tráfico, a defesa da dignidade das mulheres, das pessoas em situação de exploração, e o cuidado e a proteção dos direitos das crianças são causas inegáveis. Contudo, pouco pode contribuir projetos que somente apelam à proibição de mensagens e ao bloqueio e filtragem de meios de comunicação e internet, na defesa dos direitos das pessoas vítimas de tráfico e exploração, tornando ainda mais precário a já difícil situação das pessoas trabalhadoras sexuais independentes e autônomas.
Quando as questões morais e os prejuízos dominam esta discussão se torna muito difícil expressar publicamente a rejeição de projetos de tão nobre justificativa, mas que estabelecem antecedentes regulatórios de enorme gravidade.