Os desafios da investigação criminal na era da Internet

by Digital Rights LAC on janeiro 30, 2015

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Perseguir crimes muitas vezes implica a execução de medidas intrusivas no âmbito da intimidade e privacidade das pessoas. Este fato se torna ainda mais complexo quando se trata de nossas comunicações na Internet. Os sistemas processuais na América Latina estão prontos para enfrentar estes desafios?

Por J. Carlos Lara, Derechos Digitales.

É normal que os Estados pretendam perseguir os crimes que afligem a sociedade ou seu funcionamento. Isto, logicamente, requer obter informação que permita saber o que ocorreu e tomar medidas associadas. Contudo, essa procura pela informação poderia requerer a adoção de medidas que afetem interesses das pessoas, ou a coleta de informação, além dos casos autorizados. Esses interesses podem ser especialmente afetados no relacionado a espaços de intimidade ou de privacidade, ou seja, a investigação penal pode requerer a execução de medidas intrusivas.

As medidas intrusivas podem ser caracterizadas como aquelas permitidas no contexto de uma investigação penal, cujo objetivo é se aprofundar em aspectos e circunstâncias delimitadas dentro da esfera privada do imputado e suas relações relevantes para a resolução do caso. Assim, é possível transcender o âmbito de proteção da vida privada, cumprindo determinadas regras ou formalidades estabelecidas a nível legal. Deste modo, e como exceção, existem certos casos que merecem a adoção de medidas intrusivas sem autorização prévia, como a flagrância, sob os requisitos legalmente estabelecidos.

Contudo, não está tão claro se os sistemas processuais nacionais contemplam ou não resposta às inúmeras possibilidades de afetação de direitos fundamentais, ou suas possíveis variantes. No mais, se existem essas regras, somente sua existência não garante que as condições de coleta de informação sejam as melhores, a partir da ótica do resguardo dos direitos fundamentais.

Em outras palavras, uma primeira pergunta é pela existência de regras. Se existirem, a segunda pergunta é, se essas regras provêm um marco equilibrado de afetação dos direitos visando à procura da verdade.

Neste esforço, cabe centralizar o atendimento naquelas medidas referidas especificamente a Internet. As razões são mais ou menos óbvias: à medida que passamos boa parte de nossas vidas para a rede, rastros das coisas que fazemos existem nela.

Isto pode significar, por exemplo, que mediante e-mails sejam organizados planos ou enviada informação. Mas também, que de comunicações casuais possa ser coligida a identidade de uma pessoa, ou seu envolvimento com fatos delitivos. O conteúdo das comunicações, assim como os dados sobre seu tempo, participantes e localização, é a princípio útil para esclarecer fatos delitivos ou suas circunstâncias. Já que se trata de informação pessoal, que pode consistir em dados pessoais, assim como em informação de caráter particular ou íntimo, o acesso a ela parece requerer atenção especial. Os sistemas processuais estão prontos para enfrentar estes desafios?

A princípio, a resposta é negativa. Mesmo sabendo que os sistemas processuais penais latino-americanos costumam estabelecer mecanismos para garantir direitos fundamentais, como a privacidade, a complexidade associada aos meios de informática torna difícil essa mesma garantia.

Por exemplo, ainda que no substantivo, um e-mail cumpra a mesma função que uma mensagem por correio postal, os mecanismos processuais para sua apreensão poderiam não operar da mesma forma. Em vários casos, como Argentina ou Chile, seja por remissão expressa ou por extensão das regras gerais, a coleta de e-mails é regida pelas mesmas regras que a apreensão de correio postal, o que significa apreensão de servidores ou equipamentos completos, sob escassos resguardos procedimentais ou em desproporção em relação ao restante da informação presente em tais equipamentos.

Em outros casos, considera-se o e-mail dentro das comunicações privadas, equiparável às conversas telefônicas, permitindo então, uma intervenção similar de vigilância direcionada, de possibilidades muito más amplas que no caso da telefonia, e com mecanismos de controle dificilmente acessíveis.

Em outro sentido, a informação concernente às comunicações entre pessoas ou suas visitas à web sites (ou seja, seus metadados), poderiam também ser objeto de observação na perseguição penal, podendo atingir não somente a informação pessoal, mas também a privacidade dos titulares desses dados.

Isto é patente no caso das leis de retenção de dados de comunicações telefônicas ou eletrônicas. Graças a estes mecanismos legais, armazena-se informação concernente ao tráfego de dados entre pessoas físicas ou entre pessoas e empresas. Ainda que possa ser argumentado que essa coleta de informação é necessária -ou pelo menos útil- para a investigação criminal, coletar todos estes metadados implica necessariamente o acompanhamento das ações dos indivíduos. Isto não somente afeta sua privacidade, mas também suas liberdades, e até a garantia de um devido processo: o acompanhamento das ações e movimentos das pessoas, quando não existir investigação sobre as mesmas, constitui uma vulneração da presunção de inocência. Em tal sentido, o Tribunal de Justiça da União Europeia declarou que a Diretiva da UE sobre retenção de dados é contrária aos direitos humanos.

O panorama futuro na América Latina não parece alentador se revisamos os esforços em andamento. Leis de retenção de dados existem em países como Chile e Colômbia (e na Argentina, mediante um decreto de vigência duvidosa), enquanto no Paraguai se discute estabelecer um regime desta natureza. A resistência da sociedade civil foi clara; não obstante, os Estados da região parecem persistir na busca de incremento para sua capacidade de vigilância e controle.

Por estas razões, é necessário não somente gerar evidência quanto ao estado da região, mas também criar consciência a nível geral quanto aos riscos que significa a instauração de regras de perseguição penal sem um marco de controle de direitos humanos. Na era da Internet, isto implica um esforço ainda maior de prever invasões à privacidade. A investigação criminal não deve ser feita à margem dos direitos humanos.

*Artigo feito com base na investigação de Direitos Digitais “A privacidade dentro do sistema de perseguição penal no Chile” e “A privacidade no sistema legal chileno”.