Lei Stalker no Peru: Quando a inocência deixa de ser uma presunção
by Digital Rights LAC on setembro 23, 2015
Em 27 de julho deste ano, enquanto mais de 30 milhões de peruanos disfrutavam um feriado nacional, o governo emitiu o Decreto Legislativo 1182, uma norma que, na prática, converte todos os cidadãos em possíveis criminosos que precisam ser vigiados.
Por: Carlos Guerrero Argote*
Como advertimos desde o início na Hiperderecho, o DL 1182 (que rapidamente se tornou conhecido como a “Lei Stalker”) cria duas situações muito específicas que preveem uma restrição enorme e desproporcionada aos direitos fundamentais. A primeira é permitir a geolocalização de equipamentos conectados a uma rede de telefonia sem prévia ordem judicial e a segunda é a retenção de dados derivados das telecomunicações por um período de três anos.
A geolocalização sem controle
Antes da Lei Stalker, o procedimento para solicitar a quebra do sigilo das telecomunicações para fins de investigação criminal estava sujeito à aprovação de um juiz que qualificava a legalidade da medida e detalhava exatamente o tempo e o alcance da mesma. Assim, pode-se dizer que o impacto da privacidade era justificado pela forte evidência de que o interceptado havia cometido um crime determinado por um terceiro imparcial.
No entanto, sob o pretexto de que esta operação de controle judicial tomava muito tempo e tornava o trabalho investigativo ineficiente, o DL 1182 prevê que tal controle seja posterior. Isto é, se três pressupostos forem satisfeitos: a) quando há flagrante, b) na investigação de um crime com sanção superior a 4 anos de prisão e c) o acesso aos dados de geolocalização seja estritamente necessário.
Enquanto isso, a polícia pode “pular” o controle e terá até 72 horas antes que um juiz tome conhecimento das ações tomadas e as declare válidas ou não. Na prática, isto significa que o impacto de privacidade já não é seletivo, mas sim total. O Estado tem que nos proteger e em vez disso exige que o deixemos saber onde estamos a qualquer momento.
Estas suposições, que poderiam soar até certo ponto como válidas, sofrem de diferentes problemas. Talvez o mais visível é que nem o texto da lei, nem a exposição de motivos fornecem um único número que nos diga quantos crimes deixariam de ser cometidos ou com que frequência a polícia solicita esta informação para resolver seus casos. Na verdade, a premissa da justificação é simples: “Nós não podemos (ou queremos) explicar por que precisamos, mas estamos convencidos de que precisamos.”
A retenção de dados
Se a intercepção dos dados de geolocalização em tempo real e sem controle judicial era no melhor dos casos algo discutível, a Lei Stalker vai um passo além. O novo DL 1182 determina que as empresas de telecomunicações devem armazenar não apenas a localização, mas também os registros, duração, frequência e outros dados sobre chamadas telefônicas e navegação na Internet de todo o Peru para que possam ser consultados a qualquer momento. Todas as linhas, em todo o Peru, 24 horas, por 3 anos.
Assim, o Peru tardiamente se une a uma tendência que está em declínio em todas as democracias do mundo. E não o faz apenas ignorando vereditos como o do Tribunal Europeu ou a mais recente rejeição que experimentou a “Lei Pyraweb” no Paraguai (que propunham basicamente o mesmo), mas neste momento nem sequer se ensaia uma justificativa pois o referido texto é uma cópia fiel de uma lei espanhola e, mais chocante ainda, plagia frases inteiras de um artigo de um ativista da Fundação Karisma que ironicamente escreve contra a retenção de dados existente em seu país.
Reação dos cidadãos e a resposta do governo
Como não poderia ser de outra forma, a Lei Stalker sofreu oposição desde o início, em diferentes organizações da sociedade civil , da academia, das comunidades técnicas e inclusive foi criticada por instituições do Estado, como o Ministério Público. Há três argumentos claros que foram levantados pelos principais críticos da norma:
– A aplicação dos mecanismos da lei vai contra a jurisprudência nacional e internacional sobre o assunto e, pior ainda, vão contra o que diz a nossa Constituição, onde o controle judicial é essencial para quebrar o sigilo das telecomunicações e obter dados como a geolocalização.
– Existe uma desconfiança da população sobre o uso de tais ferramentas de monitoramento, pois o histórico de respeito à privacidade das comunicações por parte das autoridades é cheia de escândalos de intercepção ilegal, chantagens a políticos e até rastreamento a opositores do governo.
– Não há clareza sobre os limites e controles de segurança para que a lei não acabe como um remédio pior que a doença. Além de não identificar especificamente qual é a situação atual que procura resolver, o texto da norma é bastante vago tal como está agora, além de ajudar a perseguir os infratores também poderia servir para capturar líderes em uma manifestação e logo condená-los usando a geolocalização (que certamente aponta onde você esteve, mas não permite saber o que você estava fazendo).
O Governo tem sido bastante intrasigente sobre isso. Eles não só promulgaram a lei em um feriado e negaram a possibilidade de uma discussão preliminar, mas também decidiram fechar a porta a qualquer outra opção que não seja deixá-la como está, apesar do pedido legítimo de diferentes vozes da sociedade para revisar a lei e melhorá-la.
Como último recurso, eles têm recorrido a dois argumentos completamente equivocados: Um deles é que os metadados da geolocalização não fazem parte do sigilo das telecomunicações e, por isso, obtê-los sem um mandado não atenta contra a Constituição. Isso é irônico quando se considerarmos que o Tribunal Constitucional já determinou que eles são parte. O segundo é que essas leis são necessárias para combater o crime, mas sem explicar por que este mecanismo é o mais adequado para esta tarefa e por isso será bem sucedido aqui quando em outros lugares não houve nenhuma mudança significativa na diminuição da criminalidade.
Buscando construir uma proposta alternativa, a Hiperderecho lançou uma campanha através da plataforma EFF para que que os membros do Congresso saibam que a lei precisa ser modificada para melhor servir o seu objetivo, mas sem deixar espaço para a violação de privacidade de pessoas inocentes. Afinal, a Lei Stalker não é diferente de ordenar que todos os peruanos derrubem suas paredes, livrem-se de suas cortinas, derrubem suas portas e comecem a viver suas vidas sob escrutínio permanente para que eles possam provar que não estão fazendo nada de errado. E com esses tipos de leis parece que temos que supor que todo mundo é culpado até que nossos dispositivos provem o contrário.
* Carlos Guerrero Argote é advogado e pesquisador da ONG Hiperderecho.
Imagem: Constanza Figueroa / Derechos Digitales