As obras órfãs e o modelo de gestão coletiva: má proposta legislativa ao estilo colombiano*
by Digital Rights LAC on junho 12, 2013
Como no resto do continente, na Colômbia, as obras órfãs não são uma preocupação de política pública; são objeto de discussão nos círculos de especialistas, mas não foram submetidas à análise de propostas legislativas. No entanto, surpreendentemente, deparamo-nos com a reforma do sistema de gestão coletiva, que está atualmente sendo discutida no Congresso, e que parece abordar o tema ao propor sua regulação parcial.
Por Carolina Botero, Fundación Karisma.
O termo “obras órfãs” identifica as obras cujos titulares dos direitos autorais de cunho patrimonial não podem ser identificados ou localizados. O problema surge quando alguém, que deseja usar a obra protegida por direitos autorais, requer autorização para fazê-lo, mas não consegue obtê-la. Assim, com o tempo, as obras em tal condição se acumulam, e seu encerramento acaba por se tornar uma grande barreira para a circulação e para a reutilização, por parte das sociedades humanas, do patrimônio cultural. Isso afeta particularmente as instituições que lidam com esse tipo de patrimônio, como museus, arquivos e bibliotecas.
Como no resto do continente, na Colômbia, as obras órfãs não são uma preocupação de política pública; são objeto de discussão nos círculos de especialistas, mas não foram submetidas à análise de propostas legislativas. A rigor, até hoje, não há exames doutrinários ou acadêmicos que abordem o problema sob um viés local. No entanto, surpreendentemente, deparamo-nos com a reforma do sistema de gestão coletiva, que está atualmente sendo discutida no Congresso, e que parece abordar o tema ao propor sua regulação parcial.
A Colômbia está agora enfrentando uma profunda reforma do sistema de gestão coletiva dos direitos econômicos. As origens desse processo remetem às queixas feitas por um grande empresário do ramo dos concertos acerca do modo como a Sayco (principal sociedade de gestão coletiva de direitos autorais na indústria da música colombiana) administrava as autorizações para esse tipo de apresentação. O empresário acusou a organização de levar a cabo práticas informais e de cobrar taxas exorbitantes. Essas denúncias levaram a uma avalanche de protestos e de reivindicações veiculadas através da mídia. A Direção Nacional de Direitos Autorais – autoridade do Ministério do Interior que monitora essa entidade – iniciou um processo de auditoria que implicou não apenas mudanças substanciais na gestão da entidade, mas também um processo de reforma legal do sistema. Diante da situação descrita, tramita no Congresso o projeto de lei 202 da Câmara dos Deputados que, pelos próximos dias, enfrentará sua segunda audição.
O fundamento por trás da gestão coletiva é o fato de os próprios membros conferirem às entidades um mandato que as permite cobrar e recolher o dinheiro oriundo da exploração econômica da obra (essas entidades são classificadas de acordo com os tipos de obras e com os direitos de licenciamento). A gestão coletiva agiliza a coleta e a distribuição desse direito econômico.
No mundo, é comum que esses sistemas de recolhimento e de gestão dos direitos econômicos sejam privados. As entidades que os administram geralmente são sociedades privadas e, portanto, sua coleção é limitada à administração de um catálogo de obras, e a taxa cobrada é distribuída entre os seus membros. Esse é o modelo colombiano. Assim, temos um cobrador de natureza privada que distribui a renda entre seus membros.
Para essas entidades, que só administram seu próprio catálogo, é comum receber dinheiro por obras que não conseguem identificar ou cujo proprietário não pode ser localizado. Às vezes, esses são problemas relacionados ao modo como os licenciados relatam as informações dos trabalhos os quais utilizam, sendo que tais informações servem para fazer a distribuição. Logo, essas entidades podem aumentar as taxas sobre as obras de seu catálogo, sem serem capazes de identificar a quem correspondem ou mesmo se elas estão, de fato, em sua relação.
Obviamente, as entidades gestoras recolhem dinheiro pelas obras órfãs que lhes geram dificuldades administrativas, e pelo que parece, a prática é distribuir tal renda entre seus membros depois de alguns anos. Esse é o ponto explorado exclusivamente pelo projeto de reforma ao sistema em seu artigo 39.
Artigo 39 do Projeto 202/12 Câmara: Distribuição de obras ou prestações de titulares não identificados. A remuneração de obras, apresentações ou execuções artísticas, ou fonogramas de titulares não identificados deverão permanecer em segredo por um período que não deve ser inferior a 5 (cinco) anos. Após o prazo anterior, sem que haja a identificação do titular da remuneração para tais obras, performances artísticas, ou fonogramas, haverá um acréscimo ainda maior dos valores a serem distribuídos entre os sócios. Parágrafo. Para que uma obra, interpretação ou execução artística, ou fonograma puder ser considerado não identificado, e com o fim de permitir sua publicidade e sua identificação completa, as sociedades devem disponibilizar, por meios mais expeditos, para seus membros, representados e cidadãos em geral, listas de trabalhos, de apresentações ou execuções artísticas, ou de fonogramas de titulares não identificados (Texto para o segundo debate, publicado no Diário 237 de 2012).
Sem dúvida, o artigo se ocupa das obras órfãs, mas o faz abordando apenas o tema do dinheiro que as sociedades recebem indevidamente (se a situação é derivada de um pagamento equivocado, que está fora do catálogo o qual administram) ou incorretamente (porque, apesar de a obra ser do catálogo, não está suficientemente identificada para determinar o titular). O artigo, pois, não trata da problemática de forma integral para propor um modelo de licenciamento por entidades de gestão coletiva para obras órfãs ao estilo do modelo que existe nos países nórdicos, na Hungria e, recentemente, na França.
Não há, no projeto de lei 202, provisão que defina um mecanismo que permita aos colombianos o uso das obras órfãs. Também não há provisões detalhadas sobre a forma como deverá ser feita a busca do titular, e muito menos sobre os mecanismos que poderiam garantir os direitos dos não membros. A forma como o projeto de lei 202 aborda o tema desconhece a discussão que deve se dar acerca do problema das obras órfãs, além de não estabelecer uma proposta de solução integral. Ele se concentra apenas em um desses aspectos, considerando natural que uma entidade privada distribua rendas cuja origem não se pode comprovar.
O projeto 202 de 2012 enfrenta problemas referentes ao sistema de gestão coletiva, busca recuperar sua credibilidade, fornece ferramentas de transparência e revela um interessante processo de reação à crise. Nesse contexto, o correto seria eliminar o referido artigo e exigir que as sociedades se responsabilizem pelo dinheiro que distribuem, abrindo à discussão pública seu comportamento em relação às rendas que não podem comprovar se correspondem a seus membros. Só assim a norma fará sentido tendo em vista o contexto em que a reforma está sendo feita. Agora, em relação às obras órfãs, o correto seria recorrer ao debate para que a sociedade colombiana analise o problema em questão, decidindo, desse modo, qual é o modelo e quais são os mecanismos para solucioná-lo.
Se, na Colômbia, o tema fosse pensado seriamente, já estaria sido feita uma análise do que ocorre no mundo, dos modelos que já foram propostos para enfrentar o problema das obras órfãs e, especialmente, do que se deriva da gestão coletiva. Como uma forma de informar sobre o problema, este texto apresentará um panorama geral da matéria.
Modelos regulatórios para a recuperação das obras órfãs
Ao longo dos últimos anos, pôde-se perceber um avanço, por parte dos diferentes interessados, do campo das propostas de solução que lhes permitam utilizar as obras órfãs. David Hansen, que faz parte do projeto de direitos autorais para as bibliotecas digitais da Universidade de Berkeley, tem identificado ao menos 4 modelos:
1. Um primeiro modelo se sustenta no usuário que deseja fazer a reutilização e que, para isso, faz uma busca bastante diligente dos titulares. A lei propõe que, nesses casos, limite-se a possível responsabilidade, desde que tal busca cumpra alguns requisitos detalhados. Essa proposta avança nos Estados Unidos e é o pilar da proposta da Diretiva Europeia sobre obras órfãs, que beneficiaria algumas organizações públicas, como as bibliotecas.
2. Um segundo modelo implementa um órgão administrativo centralizado de direitos autorais, que se encarrega de conceder as autorizações de usos específicos aos usuários. O Canadá foi o primeiro a ter implementado esse modelo. Outros países, como o Japão, a Coreia do Sul, a Inglaterra e a Índia, o estão analisando.
3. O terceiro modelo se refere a um sistema que propõe que a busca se faça por uma entidade que outorga licenças de uso, como as que se ocupam da gestão coletiva de direitos patrimoniais nos países nórdicos, e tem sido o modelo usado em uma recente reforma legislativa na França.
4. O professor Hansen se refere ao quarto modelo como híbrido, já que combina diferentes grupos de participantes em diferentes etapas. Esse modelo inclui sistemas que diferenciam mecanismos para a digitalização massiva e, em geral, para usos massivos, daqueles que facilitam os usos individuais de obras órfãs. Sistemas desse tipo estão sendo discutidos na Inglaterra.
O modelo de licença de uso através da gestão coletiva
Farei referência, neste texto, ao terceiro modelo citado por Hansen, que foi implementado na Hungria, na República Checa e nos países nórdicos: Noruega, Suécia, Dinamarca, Islândia e Finlândia. Recentemente, uma versão desse modelo foi desenvolvida na França.
As licenças oferecidas pelas entidades de gestão coletiva, referentes às obras órfãs, cobrem usos nos quais os altos custos das permissões podem impedir usos socialmente benéficos, tais como as reproduções educativas, a transmissão à cabo, os usos em prol de pessoas incapacitadas e a reutilização de material de arquivo de emissoras. De acordo com o governo, há diferentes usos autorizados por essas licenças.
Nesse sistema, os países nórdicos se apoiam em acordos existentes para a gestão coletiva dos direitos patrimoniais estabelecidos com algumas entidades específicas. No entanto, o que se faz na verdade é ampliar legislativamente o alcance, permitindo, assim, que as entidades de gestão coletiva representem titulares que não são seus sócios. O sistema é eficiente, uma vez que as entidades autorizam os usos correspondentes e poupam, assim, o usuário da responsabilidade que poderia recair sobre ele por causa de algum uso não autorizado. O aspecto-chave da lei é o estabelecimento de uma série de previsões para regular a relação da entidade com os não sócios que possam vir a ter de lidar com alguma desvantagem. O principal problema identificado por Hansen no que tange a esse sistema é o fato de ele estar limitado pelo alcance dos direitos que a entidade de gestão proporciona.
Nesse modelo, a busca do titular recai sobre a entidade de gestão e não sobre o usuário. Por isso, as sociedades de gestão coletiva devem tomar medidas para identificar o titular depois de receberem a solicitação de licença e o pagamento correspondente. Dado que essa busca se faz depois de receber o dinheiro, o professor Hansen reitera que legalmente as entidades de gestão devem tratar os membros e os não membros de forma igualitária em que pese á remuneração, além de apontar a necessidade de se reconhecer que essa situação pode provocar um potencial conflito de interesses entre as entidades de gestão coletiva, já que, quando não é possível identificar o titular, passado certo tempo, os fundos que suas obras geram serão revertidos à entidade. O conflito pode se materializar devido ao pouco incentivo que esse esquema oferece para que as entidades de gestão coletiva conduzam uma busca um pouco mais madura para os não membros. Vale a pena mencionar que o sistema francês, depois de alguns anos, passou a permitir usos gratuitos de suas bibliotecas.
O modelo de licenciamento através das entidades de gestão coletiva, como qualquer outro sistema pensado para obras órfãs, tem como propósito central que essas obras possam ser reutilizadas dentro do processo criativo, além de buscar propiciar a circulação do conhecimento. O modelo para fazê-lo é a forma como se operativiza tal propósito dentro de um sistema legal que constitui uma barreira. Os mecanismos elaborados inserem a solução dentro das normas existentes, e obrigam a pensar em um ecossistema que, de um lado, estabelece definições, determina responsáveis, direitos, atores, e de outro, institui a definição e, se for o caso, a eventual administração de uma possível remuneração.
Finalizemos, pois, afirmando que, na América Latina, o tema ainda não deixou de ser uma inquietação exclusiva de especialistas e, por isso, está longe de ser uma preocupação legislativa. Na região mencionada, o mais próximo que se conseguiu chegar de uma abordagem das obras órfãs se deu na Argentina, onde há uma exceção para edições posteriores à morte do autor. Desde que isso foi instituído, passou-se a abordar alguns aspectos da categoria em questão. Em contrapartida, como podemos ver, a Colômbia, onde, neste momento, há uma proposta acerca da reforma das sociedades de gestão, a qual inclui elementos do terceiro modelo de Hansen, continua apresentando um enfoque superficial acerca do tema e, já que as consequências desse fato podem ser perversas, faz-se necessária a retirada do projeto de lei, instaurando-se, em seu lugar, uma ampla discussão no seio da sociedade colombiana.
*A primeira versão (mais curta) deste artigo foi publicada em “Open Business Latin America & Caribbean”.
Carolina Botero es directora de Derecho, Internet y Sociedad de la Fundación Karisma
E-mail: carobotero (at) gmail.com