A privatização do combate à pirataria: o contexto brasileiro

by Digital Rights LAC on março 1, 2014

Pirateria - (CC BY-NC-SA 2.0) Ariani Caetano OK

Após anos exigindo uma atuação mais forte do Poder Público no combate à pirataria, a estratégia atual dos lobbies de propriedade intelectual é a de transformar o Estado em uma instância mediadora na assinatura de acordos entre atores do setor privado. No Brasil, essa tendência é claramente verificável na abordagem da indústria para a pirataria online no âmbito do Conselho Nacional de Combate à Pirataria (CNCP).

Por Pedro Nicoletti Mizukami

CNCP: breve histórico

O ano de 2005 é um marco divisor na história do combate à pirataria à brasileira. Foi em 2005 que o governo brasileiro finalmente cedeu às pressões das indústrias de propriedade intelectual, via o governo dos EUA, e internalizou definitivamente a agenda internacional da observância dos direitos de propriedade intelectual. Foi em 2005 que efetivamente começou a operar o Conselho Nacional de Combate à Pirataria e Delitos contra a Propriedade Intelectual (CNCP), criado no âmbito do Ministério da Justiça, após recomendações da CPI da Pirataria, com a missão de servir como um fórum público-privado para o desenho de políticas públicas e coordenação entre diferentes setores econômicos e órgãos do governo.[1]

A trajetória que nos levou ao CNCP encontra-se documentada no relatório Media Piracy in Emerging Economies, disponível em inglês, espanhol, russo e chinês. É uma história razoavelmente longa, que pode ser resumida como o resultado de anos de pressão promovida pelas indústrias de propriedade intelectual por intermédio do United States Trade Representative (USTR) e de seus relatórios Special 301. A validade das listas de “países piratas” compostas no âmbito do Special 301 é de legalidade duvidosa na era pós-OMC, mas é indiscutível que elas tiveram um papel fundamental no processo que resultou na criação do CNCP e na adoção de um Plano Nacional de Combate à Pirataria (atualmente em sua quarta edição). Ainda que depois de 1994 sanções comerciais apenas sejam aplicáveis mediante decisão da OMC e nunca unilateralmente — o que afasta em muito o poder de intimidação do Special 301 em sua configuração inicial —, o processo de composição de listas continuou servindo como combustível para pressão eficaz.

Se internacionalmente o Brasil mantém posições bastante progressistas no que diz respeito à propriedade intelectual, tendo sido um ator importante nos debates que levaram à aprovação da Agenda do Desenvolvimento da OMPI (2007) e do Tratado de Marrakech (2013), domesticamente a situação é bem mais ambígua. Ao mesmo tempo em que, no quinto encontro do Advisory Committee on Enforcement da OMPI o Brasil apresentava um documento apontando eloquentemente os problemas de uma política de observância de propriedade intelectual que segue um padrão “one size fits all”, com a defesa de uma agenda de pesquisa rigorosa para o cumprimento da Recomendação 45 da Agenda do Desenvolvimento, o CNCP continuava a divulgar três números referentes aos prejuízos supostamente sofridos pelo país em virtude da pirataria que não tinham fontes ou metodologia claras.

Contradições como essa, evidentemente, não são estranhas a processos políticos complexos como os relativos à propriedade intelectual. E a existência do CNCP permite ao Brasil criticar políticas maximalistas externamente, a partir do argumento de que domesticamente os padrões internacionais e as demandas da indústria estão sendo atendidos.

Em 2012, o Ministério da Justiça pela primeira vez demonstrou-se sensível aos debates ocorridos na academia sobre direitos autorais e pirataria. Para o mandato de 2012-2014, foram admitidos como membros do Conselho o GPOPAI da Universidade de São Paulo e o Centro de Tecnologia e Sociedade da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas, ambos com posicionamentos que sugerem uma abordagem diferente da tradicionalmente adotada pelo CNCP. [2]

Tivemos a oportunidade, assim, de confirmar diretamente a análise realizada no relatório Media Piracy in Emerging Economies no dia-a-dia do CNCP. Por exemplo:
● As fronteiras entre o público e o privado às vezes ficam borradas em um fórum público-privado;
● O CNCP opera, principalmente, contribuindo para melhorias na vertente repressiva do Plano Nacional de Combate à Pirataria (ações policiais e de fiscalização), em detrimento das vertentes educativa (propaganda antipirataria) e econômica (modelos de negócio — muito difícil, já que os conselheiros da indústria não têm mandato de seus clientes para discutir esse tema);
● O governo costuma isolar os temas mais importantes para discussão pelo Grupo Interministerial de Propriedade Intelectual (GIPI) e outras instâncias onde o setor privado não tem participação direta; [3]
● O CNCP é um fórum mais preocupado com contrafação, comércio informal e contrabando do que pirataria propriamente dita, no sentido estabelecido pela nota 14 ao artigo 51 de TRIPS; [4]
● Por consequência, em se tratando de pirataria online, as tentativas pretéritas de se fazer com que o Conselho tenha uma atuação forte nunca foram muito expressivas, ponto que merece especial atenção.

Em razão da dinâmica de forças e interesses no Conselho ser razoavelmente diversificada — filmes, bebidas, remédios, cigarros etc. — a prioridade até o presente momento foi atacar os alvos em que havia sobreposição de interesses entre os diferentes setores. O CNCP priorizou, portanto, ações repressivas focadas no comércio informal e no trânsito de mercadorias nas fronteiras do país. Como as ações de coordenação entre Polícia Rodoviária Federal, Receita Federal, Polícia Federal, e agências pertinentes como a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) já atingiram um grau de articulação considerável, considerando-se os recursos e limitações disponíveis, e o CNCP está fazendo o máximo possível no sentido de promover articulação entre as autoridades pertinentes também nos níveis estadual e municipal, é natural que a atenção do Conselho volte-se agora ao digital.

O CNCP e a pirataria online: antecedentes

Em 2008 houve, no âmbito do CNCP, a tentativa de se importar para o Brasil um sistema de three strikes/resposta graduada para atacar o compartilhamento de arquivos em redes p2p. Foi organizado um grupo de trabalho no âmbito do Conselho, sob o projeto “Cooperação com Provedores de Internet”. O objetivo era fazer com que o CNCP atuasse como uma instância mediadora entre indústria, de um lado, e provedores de conexão, de outro, para a implementação de um sistema inteiramente privado de notificações a usuários que estivessem compartilhando material protegido por direitos autorais em redes p2p.

Em um primeiro momento foram discutidas sanções de corte de conexão; posteriormente, levando-se em consideração a repercussão negativa da Hadopi na França, chegou-se à ideia de que seria mais prudente apenas limitar a velocidade da conexão dos usuários ou bloquear os protocolos utilizados no compartilhamento p2p. O projeto naufragou devido a um parecer desfavorável emitido por outro órgão do Ministério da Justiça, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) em setembro de 2009, corretamente preocupado com os graves problemas que a medida poderia ensejar no tocante à privacidade dos usuários.

Em agosto de 2012, o grupo voltou a se reunir, com outro objetivo. A indústria, ao que tudo indica, desistiu da ideia de um sistema de resposta graduada, e deixou de lado a questão do compartilhamento via redes p2p para insistir na importância de mecanismos de notificação e retirada. Havia o rumor, na época, de que o Marco Civil da Internet teria votação iminente na Câmara dos Deputados — o que até o momento em que este texto foi finalizado, em 11 de fevereiro de 2014, não ocorreu —, e havia a preocupação de que no lapso temporal decorrente entre a aprovação do Marco Civil e o início das discussões da reforma da Lei de Direitos Autorais, cujo anteprojeto conta com um mecanismo de notificação e retirada, a indústria ficasse “desprotegida”. Seria importante, conforme os representantes da indústria, que o próprio Marco Civil contasse com um mecanismo semelhante.

Como o projeto do Marco Civil havia sido gestado no interior do próprio Ministério da Justiça, era evidente que a discussão encontrava-se preclusa. Não havia mais possibilidade de se abordar o assunto, já entregue ao Legislativo. A reunião, entretanto, é bastante reveladora de tendências que ainda podemos observar no interior do CNCP. E, como o CNCP apenas reflete uma agenda essencialmente global, de tendências que podemos verificar globalmente.

“Cooperação”

O processo legislativo não costuma ser muito célere, e pela própria natureza é mais sensível a demandas de múltiplos atores e interesses frequentemente contraditórios. Os representantes da indústria parecem mais investidos, no momento, em estratégias que prescindam da atuação do Estado, ou releguem o Estado à posição de uma instância mediadora que facilite a assinatura de acordos exclusivamente entre atores privados. Legislação, nesse contexto, acaba tendo importância secundária, apenas reforçando a concretização desses acordos ou estabelecendo mecanismos cuja execução é inteiramente conduzida por atores privados (como, por exemplo, os sistemas de notificação e retirada). [5]

Não é a toa que o grupo de trabalho que inicialmente buscava a implementação de um sistema de resposta graduada no Brasil tinha como objetivo estabelecer um “acordo cooperação com provedores de Internet”. E não é à toa que um projeto recentemente colocado em discussão no CNCP, cujo objetivo é a realização de acordos entre a detentores de direitos de propriedade intelectual e agentes responsáveis por meios de pagamento (Visa, MasterCard, PayPal etc.), quase uma versão abrasileirada de um dos componentes do SOPA, também foi proposto como um projeto de “cooperação”. O próximo alvo são os intermediários responsáveis pela colocação de publicidade em sites web.

Com ou sem legislação de fundo — estabelecendo incentivos genéricos de intermediação entre atores industriais, ou mecanismos específicos de notificação e retirada, por exemplo — o futuro parece ser o da privatização do combate à pirataria online. Acordos entre empresas, manuais de melhores práticas e documentos de fixação de standards parecem ser os instrumentos que futuramente determinarão as regras e os mecanismos de ataque para lidar com a pirataria (ou acusações de pirataria).

Assim como em 2005, caminhamos rumo a outro momento de virada no Brasil. Uma virada para um cenário em que os fóruns onde as políticas de observância de PI passam a ser inteiramente privados, as discussões acontecem atrás de portas fechadas e, como resultado final, produzirão sistemas em que os usuários ficam em condição de extrema vulnerabilidade e sem voz. Além das questões substantivas quanto à natureza e legitimidade dos regimes em discussão, surge o desafio de encontrar meios de posicionar ONGs que atuem em defesa do interesse público, ou identificar interlocutores que possam cumprir essa missão nesses fóruns de difícil acesso. Além de lutar por leis que imponham freios e contrapesos nesse processo, é importante pensar em como podemos lidar com esses problemas diretamente na fonte.

[1] Modelos como o CNCP brasileiros são exatamente o que o artigo 28(3) e (4) do ACTA prevê:
“Article 28
[…]
3. Each Party shall, as appropriate, promote internal coordination among, and facilitate joint actions by, its competent authorities responsible for the enforcement of intellectual property rights.
4. Each Party shall endeavour to promote, where appropriate, the establishment and maintenance of formal or informal mechanisms, such as advisory groups, whereby its competent authorities may receive the views of right holders and other relevant stakeholders.”

[2] Além das duas instituições de ensino mencionadas, a composição do CNCP para 2012-2014 foi estabelecida da seguinte maneira: pelo setor público, Ministério da Justiça (presidente), Ministério das Relações Exteriores, Ministério da Fazenda, Receita Federal do Brasil, Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Ministério da Cultura, Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, Ministério do Trabalho e Emprego, Departamento de Polícia Rodoviária Federal, Câmara dos Deputados, Senado Federal, Secretaria Nacional de Segurança Pública; pela indústria: ABPI (Associação Brasileira da Propriedade Intelectual), Interfarma (Associação da Indústria Farmacêutica de Pesquisa), FNCP (Fórum Nacional de Combate à Pirataria), Instituto ETCO (cigarros, bebidas, combustíveis e software) e UBV (União Brasileira do Vídeo). Antigos conselheiros como a Associação Brasileira de Produtores de Discos (ABDP), ABES (Associação Brasileira das Empresas de Software) e Motion Picture Association (MPA) figuram como colaboradores e, nessa capacidade, participam de todas as reuniões.

[3] Para saber mais sobre o GIPI, ler: PORTO, Patrícia Carvalho da Rocha e BARBOSA, Dênis Borges. “O GIPI e a governança da propriedade intelectual no Brasil”. Radar IPEA n. 29, 2013, p. 19. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/agencia/images/stories/PDFs/radar/131009_radar29.pdf

[4] O uso indiscriminado da palavra “pirataria” continua sendo um debate muito grande no CNCP. Por trás de uma questão que alguns no Conselho afirmam ser um “tecnicismo”, existem batalhas entre os setores representados por atenção na pauta, bem como a questão do uso estratégico dos resultados de pesquisas e ações entre os diferentes setores. Números referentes à venda de roupas contrafeitas e contrabando de cigarros, por exemplo, podem ser aproveitados para outros setores, e vice-versa. Afinal, é tudo “pirataria”.

[5] A contribuição da IIPA ao Special 301 de 2014 está repleta de exemplos desse tipo de demanda. O capítulo referente ao México pede que sejam criados por lei “incentivos para que os provedores cooperem com os detentores de direito para combater infrações que aconteçam em suas redes ou plataformas”. O capítulo da Argentina menciona a necessidade de “desenvolver processos que aperfeiçoem a cooperação entre detentores de direitos e intermediários online de maneiras que provavelmente contribuam para um declínio em pirataria online”. O relatório do Brasil afirma que “envolvimento ativo do governo poderia ajudar a unir provedores e detentores de direitos para encontrar meios efetivos de lidar com as formas mais sérias de pirataria online, e prevenir seu crescimento”.
O boletim da OMPI “Building Respect for IP” de dezembro de 2013 traz dois exemplos recentes de acordos de colaboração/cooperação entre entidades privadas: um Memorandum of Understanding assinado entre a International AntiCounterfeiting Coalition (IACC) e o Taobao Marketplace, e um acordo assinado por Google, Yahoo!, Microsoft e outras empresas, supervisionado pelo US Interactive Advertising Bureau, com o objetivo de estabelecer standards para cortar sufocar financeiramente sites que veiculam material em violação a direitos autorais.