Em Negativo: um século de fotografias, prestes a ser privatizado
by Digital Rights LAC on dezembro 16, 2015
Estávamos em um exaustivo novembro de 2009, quando, entre 130 projetos de lei que tratavam de temas diferentes, os deputados argentinos decidiram -sem o devido tratamento- prorrogar o prazo de proteção sobre os fonogramas de 50 para 70 anos após a publicação. Mercedes Sosa, a voz feminina mais importante do folclore argentino, tinha morrido apenas um mês antes. Seus primeiros álbuns, como La voz de la zafra, haviam sido publicados em 1961 e estavam prestes a entrar no domínio público. Mas a incrível velocidade com que os legisladores agiram impediu isso: o projeto de lei S3030/09, apresentado por Miguel Pichetto (Frente para la Victoria), entrou na pauta no mesmo mês em que “La Negra” Sosa morreu; foi analisado em regime de urgência no Senado e em menos de dois meses, os deputados e senadores argentinos tinham roubado 20 anos da música popular argentina.
Por: Evelin Heidel, Fundación Vía Libre
O problema da extensão da proteção de 50 para 70 anos ligou o alerta em algumas organizações sociais, como Wikimedia Argentina, responsável por promover a Wikipédia e seus projetos associados; Fundación Vía Libre, uma ONG dedicada à defesa dos direitos digitais; e Red Panal, uma plataforma de músicos. Em seus comunicados advertiram que os senadores, de filiação peronista, estavam cometendo a insensatez de privatizar o progresso que os caracteriza e que já trouxe muitas dores de cabeça para eles: em junho desse ano, Hugo Fontana, filho de Hugo del Carril, tinha proibido a execução da marcha em eventos de campanha. A marcha peronista de Hugo del Carril foi registrada em 1949 e em janeiro de 2010, entraria no domínio público.
As gravadoras apoiaram o projeto, que recebeu o suporte de conhecidas vozes argentinas como Fito Paez, para que o processo parlamentar fosse resolvido rapidamente. O filho de Mercedes Sosa ajudou ao longo do caminho. Depois de guardar o álbum por 48 anos sem reeditá-lo, e com o corpo de Mercedes ainda quente, as gravadoras finalmente decidiram que La voz de la zafra deveria ver novamente a luz do dia, Diego Fischerman em sua resenha na Página/12 escreveu “Que outro momento, se não agora, iriam editar esses discos?”
Poucas pessoas, no entanto, inteiraram-se sobre tudo isso que estava acontecendo. Página/12 foi o meio de comunicação mais ativo e naquele momento publicou uma série de artigos sobre o assunto. Em um deles perguntava: “70 anos não é nada?” Mas a resposta estava girando no vazio: ninguém, nenhum dos legisladores que tinham apresentado a medida, se atreveu a responder, nem mesmo a consideraram importante. Litto Nebbia, músico renomado e pioneiro do rock nacional argentino, criticou a medida.
Já dizia Marx que Hegel dizia que a história se repete, a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Neste caso, é uma dupla tragédia: uma vez a que a voz da “Negra” Sosa foi privatizada e está novamente sob bloqueio a sete-chaves pelas gravadoras, agora querem privatizar algumas das suas imagens mais emblemáticas.
Desta vez, o projeto foi apresentado por Liliana Mazure (Frente para la Victoria) e carrega as assinaturas de Gloria Bidgain, Susana Canela, Gaston Harispe Hector Recalde e Eduardo Seminara. Propõe extender a proteção dos direitos autorais sobre imagens, de 20 anos pós-publicação para 70 anos post-mortem do autor, como está previsto para os outros autores da lei 11.723. Por isso as fotografias de Annemarie Heinrich, incluindo o retrato de Mercedes Sosa, vão desaparecer de sites como a Wikipedia.
O projeto foi apresentado a pedido da ARGRA, a Associação de Repórteres Gráficos da Argentina, e entre os seus objetivos está “equiparar o prazo de proteção dos Autores Fotográficos” (sim, Autores Fotográficos, com letra maiúscula). Na fundamentação, argumentam que “devido ao prazo, ingressam prematuramente no domínio público obras que realmente convivem com a atividade criativa e profissional dos autores, e assim perdem a sua coleção, reconhecimento e gozo. […] Essa entrada para a esfera pública não resulta em um benefício geral para a comunidade, mas em uma deterioração patrimonial e moral dos autores.”
Na prática, o aumento dos prazos significa tornar ilegal a atividade de coleções e repositórios digitais tão variados como o Arquivo Geral da Nação, a Biblioteca Digital Trapalanda da Biblioteca Nacional e projetos voluntários ou comunitários como a Wikipedia. Na verdade, o artigo 72 da Lei de Propriedade Intelectual Argentina estabelece sanções penais por violações à lei 11.723. No caso de projetos como a Wikipedia, as suas próprias regras dizem que você não pode fazer upload de arquivos que não atendam as seguintes condições: ter uma licença livre ou estar em domínio público. Isso existe para evitar reivindicações de direitos autorais.
Além disso, este aumento do tempo não seria um benefício real para os autores, pois a fixação do prazo em 70 anos post-mortem, na verdade, é um direito que se garante aos herdeiros. As consequências desastrosas desta extensão aos herdeiros já foram verificadas em muitos casos, dos herdeiros de Fontanarrosa, que após a sua morte impediram a publicação de seus trabalhos por vários anos até que um juiz sensato teve a sabedoria de lembrá-los que existem direitos culturais sobre direitos de propriedade; até o mais recente caso da viúva de Borges, que ameaçou levar o escritor Paul Katchadjian para a cadeia por fazer circular um remake de edição restrita (200 cópias), em um claro experimento literário.
Assim, o projeto de lei de Mazure dá mais poder aos herdeiros, que podem tornar-se um incômodo real como no caso dos autores mais renomados. Mas na grande maioria dos casos, os herdeiros simplesmente condenam as obras de seus ascendentes ao esquecimento. Foi precisamente para evitar isso que em 2010 o fotógrafo argentino Jorge Royan começou a upar mais de 600 fotos para a Wikipedia, para evitar que “estas permanecessem no seu computador quando ele não estivesse e que não se tornassem apenas uma curiosidade para os seus futuros netos.”
A extensão do prazo seria simplesmente catastrófica para projetos como a Wikipedia. Wikimedia Argentina anunciou que a “Wikipedia podia ficar sem imagens da história da Argentina.” O título é suficientemente forte, mas para ilustrar a ideia, basta recorrer a algumas fotos de Horacio Coppola ou as mais de 10.000 fotos agrupadas sob a categoria “Domínio Público da Argentina” da Wikipédia para avaliar o tamanho da perda. Estarão perdidas fotos de símbolos tão emblemáticos como Coca Sarli, o soldado chorando durante o funeral de Perón em 74, ou a foto iconográfica de Eva Perón usando maiô de bolinhas. Isso, sem contar todo o arquivo fotográfico da década de 70, como as marchas das Avós e Mães da Praça de Maio, que voltará aos arquivos dos meios de comunicação e ao ostracismo dos herdeiros.
Em alguns casos, como com as fotos de 19 e 20 de Dezembro de 2001, é impossível calcular quando entrarão no domínio público. 2106? 2150? O mesmo se aplica para as fotos da Guerra das Malvinas, entre outros registros históricos de importância. Lembre-se: de 20 anos de pós-publicação, vai para 70 anos post-mortem.
Fundación Vía Libre, juntamente com mais de 50 organizações assinaram uma declaração opondo-se à reforma. Entre as organizações signatárias estão a Electronic Frontier Foundation, Creative Commons International, vários capítulos da Wikimedia, e organizações similares. Diversos meios de comunicação internacionais divulgaram a notícia, embora o impacto na imprensa local pareça ter sido bastante limitado, com exceção de algumas notas soltas no rádio e nos jornais La Nación, Infobae e Tiempo Argentino.
Mas as declarações e a imprensa internacional não parecem ter abalado Liliana Mazure, a deputada que apresentou o projeto. Apenas disse em sua conta no Twitter que “Na internet este tema não está regulado, ou seja, que ninguém conseguirá nada.” Temos que perguntar por que, então, o The Pirate Bay permanece bloqueado na Argentina. Em seguida, advertiu que “em outros meios de comunicação, os autores cobrarão por seus direitos autorais assim como fazem os atores, músicos, diretores.”
A proposta de Mazure expões seus fundamentos: “A utilização segura dessas imagens vai beneficiar a atividade empresarial dos meios de comunicação, que usufruirão sem nenhum custo um material que tem a sua validade e efetividade preservadas.”
Mas, ao contrário de seus objetivos declarados, dá mais poder as empresas jornalísticas que contratam fotojornalistas. O próprio site da ARGRA, em uma seção dedicada aos direitos de autor, afirma: “Quando as obras foram feitas no contexto de uma relação de dependência, os direitos econômicos estão sujeitos às condições acordadas no contrato de trabalho (artigo 28) “. Isto significa que os direitos das obras são das empresas e não dos autores quando estes fotógrafos estão em uma relação de dependência. Na verdade, a doutrina da aquisição de direitos de propriedade intelectual mediante contratação não é nova, e é aplicada aos trabalhos de software e obras encomendadas. Na prática, este projeto restitue a grande mídia mais de cinqüenta anos de arquivos fotográficos, dado o carácter retroativo da lei.
Os benefícios para os fotógrafos são bastante escassos. O dano para a comunidade, enorme. Discutir a lei 11.723 é uma tarefa que não pode mais ser adiada.
Nota do Editor: Em 04 de novembro de 2015, a Câmara aprovou e enviou ao Senado o projeto de lei para estender a proteção para 50 anos a partir da primeira publicação da obra. A aprovação ocorreu posteriormente a redação original deste texto.
Imagem: Domínio público via Wikimedia Commons