Direitos Autorais e Acesso à Cultura no Ambiente Digital
by Digital Rights LAC on dezembro 21, 2013
Por, Allan Rocha de Souza
O século XV abriga importantes transformações sociais e tecnológicas que marcam o surgimento de uma nova era, moderna, com marcantes rupturas com relação ao período anterior. A criação de universidades e sua independência da Igreja ao fim da Idade Média já havia resultado no aumento do alfabetismo e uma consequente demanda por livros, que levou à ampliação do campo de trabalho dos escribas. A posterior invenção da impressora, por Gutenberg em 1436, e do papel, em 1440, possibilitaram a reprodução dos livros em uma escala infinitamente superior ao conhecido então.
A facilidade de reprodução, a alfabetização de um maior número de pessoas e uma produção literária mais intensa e diversificada dá origem a um período de eclosão cultural – a Renascença – e, concomitantemente, de uma indústria cultural, na qual se destacavam os impressores e vendedores de livros.
Esta nova oportunidade econômica, marcada pela viabilização em escala comercial da reprodução e distribuição de livros conduziu ao surgimento dos primeiros privilégios de invenção concedidos na República Veneziana unicamente aos editores. Os privilégios concedidos pela Coroa aos livreiros são a primeira configuração jurídica específica para a proteção dos direitos de criação, protegendo-os assim da concorrência alheia, garantindo-lhes o monopólio e assegurando o desenvolvimento e sustento de editores locais, com consequências positivas para o Reino concedente do privilégio. Outro fator de grande relevância que impulsionaram a concessão de privilégios é a sua função política, cujo objetivo principal era o de controlar o que era publicado e lido, estabelecendo uma limitação – censura – ao conteúdo que era produzido e posto em circulação.
As transformações trazidas pela prensa e tipos móveis, o papel, a alfabetização e as possibilidades que criou podem ser comparadas às mudanças ocorridas em função da substituição da tecnologia analógica pela digital a partir da década de 1980. Mas há algumas diferenças que ajudam a contextualizar os desafios postos à regulamentação dos direitos autorais no nosso tempo.
A principal é que, então, o surgimento do suporte para as criações cuja reprodução e distribuição eram economicamente viáveis possibilitou a formação de uma indústria cultural que se sustentava no controle da produção e circulação do suporte onde as criações literárias estavam inseridas. Já a revolução das tecnologias digitais de comunicação e informação leva a desmaterialização do suporte, dissipando em consequência o controle no qual se sustentou a indústria cultural por cinco séculos.
Assim como em outras épocas, a nova contextualização gerou uma demanda da indústria de atualização da legislação que regulamenta o mercado cultural, a fim de assegurar a continuidade do controle jurídico dos fluxos econômicos do setor, num ambiente em que o suporte físico deixa de ser necessário. Esta revisão normativa, como em outros momentos de difusão tecnológica na história, objetivou ampliar o escopo da proteção com a ampliação de seu objeto, extensão progressiva dos prazos, redução das limitações.
No plano internacional estas mudanças são simbolizadas pelo Acordo TRIPS, da OMC, e o “Copyright Treaty” e o “Performances e Phonogram Treaty” da OMPI. Nacionalmente esta tentativa de garantir a continuidade do controle da produção, reprodução, circulação e utilização das criações conformou a Lei 9.610 de 1998.
A elaboração do texto legal, normativo, é apenas um primeiro passo no processo de consolidação social da norma, que ainda passa por uma disputa quanto aos seus significados, campo de aplicação, efetividade e principalmente eficácia na conformação social dos comportamentos desejados. Mas, desta vez, a indústria cultural estabelecida não contou com a complacência da sociedade, que permanece resistindo de diversas formas à concretização dos comandos legislativos.
A aceitação destes direitos exclusivos e o seu escopo jamais foram pacíficos, porém a oposição social nunca alcançou o nível atual. O que mudou em nossa época que possibilitou uma resistência massiva e disseminada à estrutura normativa negociada politicamente pela indústria? Responder a esta pergunta é o desafio que se coloca a todos os pesquisadores, profissionais e ativistas. Mas que, pela sua complexidade e implicações, a questão só poderá ser enfrentada satisfatoriamente de forma coletiva, então o que se segue é a breve ilustração de uma hipótese, uma explicação sobre as possíveis razões e justificativa da resistência social ao controle digital.
A penetrabilidade das tecnologias, a comunicação em rede de todos para todos, a facilidade e barateamento da reprodução e difusão das obras objeto de proteção, somado às novas possibilidades de criação e utilização permitiram a apropriação social e cultural destes bens, independente do desejo da indústria e além de sua capacidade de controle.
A desmaterialização do suporte e a digitalização das obras resultaram em uma ampla disponibilização e acesso ao conteúdo cultural antes impensado, em flagrante contraste com o texto normativo construído por e para a indústria consolidada. As tentativas de perpetuação do controle não são satisfatórias e paulatinamente fracassam.
Ao mesmo tempo assistimos, a partir dos derradeiros anos do século passado, ao avivamento de um leque de direitos adormecidos, os direitos culturais, em especial o direito de acesso à cultura. Previstos na Declaração de Direitos Humanos de 1948 e nos Pactos de Direitos Civis e Políticos e de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, de 1966, além da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, permaneceram inertes por décadas, sem irradiar seus efeitos sobre os bens de natureza cultural protegidos por direitos autorais.
A percepção e resistência social ao enclausuramento destes bens advêm da materialização do acesso possibilitada pela massiva digitalização e disponibilização das obras, conformando e consolidando a demanda pela efetivação de um direito até então não amplamente vislumbrado.
Direitos não nascem em árvores, são construções que derivam de demandas sociais que encontram seus caminhos políticos no processo legislativo ou reconhecimento pelas vias judiciais, mas cuja concretização depende sempre da aceitação voluntária substancial de seus comandos pelos grupos e pessoas ao qual se destinam.
O poder político e econômico das indústrias fora suficiente para consolidar um novo marco jurídico internacional e também elaborar normas nacionais que pretendiam eternizar o controle conseguido sobre os suportes físicos em um novo contexto tecnológico.
Porém, as novas formas de produção, reprodução, difusão e utilização das criações possibilitadas neste novo contexto permitiram o empoderamento dos cidadãos, então vistos apenas como destinatários dos bens culturais, que passaram a demandar a efetivação do direito de acesso à cultura, contrapondo-se aos desejos da indústria.
Vivemos hoje uma situação em que convivem contraditoriamente proibição formal e amplo acesso material em uma clara fotografia de deslegitimação social do texto legal. A composição destas demandas divergentes com respeito amplo aos direitos emergentes é o desafio que se põe há duas décadas.