Direitos autorais em debate no Uruguai

by Digital Rights LAC on dezembro 21, 2013

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2013 foi um ano de discussões profundas sobre os direitos autorais no Uruguai, que culmina com a apresentação de um projeto para modificar a lei de direitos autorais, o qual agrega exceções e elimina as sanções penais às infrações sem fins lucrativos. Um exame dos episódios recentes nos permitirá contextualizar esse processo.

Por, Movimiento Derecho a la Cultura

Cavalos de troia na lei

Em julho deste ano, um breve artigo incluído na Prestação de Contas – espécie de “lei-antologia” que trata majoritariamente sobre temas orçamentários e administrativos – pretendia aumentar os prazos de proteção de direitos autorais em 20 anos, alcançando os 70 anos após a morte do titular. Os questionamentos públicos da comunidade de artistas que era supostamente beneficiada pela medida e a resistência organizada pela campanha #noal218 resultou na retirada do artigo, que, no fim das contas, não foi posto na pauta de votação do Parlamento. Abria-se, assim, uma possibilidade de debate inédita no Uruguai acerca do alcance das restrições ao acesso à cultura, representadas pelos direitos autorais.

No entanto, o artigo 218 não foi o único cavalo de troia detectado na lei. A Prestação de Contas aprovada em outubro de 2013 incluía outra modificação que percebida demasiadamente tarde. Trata-se do artigo 251, por meio do qual o Parlamento estabelece, por vias interpretativas, que o Serviço Oficial de Difusão Radioelétrica (SODRE) tem a obrigação de pagar pelo uso das obras que se encontram em domínio público. Essa situação gera uma série de objeções e de dúvidas não só acerca das formas de aplicação do artigo 251, como também sobre a própria pertinência da figura do domínio público pagante na lei uruguaia.

Porém, nem todas as incorporações à Prestação de Contas foram negativas. Nesta, o Uruguai introduziu importantes exceções aos direitos autorais em benefício de pessoas cegas ou com outras limitações sensoriais (artigo 237 da lei de Prestação de Contas). Além disso, o Uruguai assinou o Tratado de Marrakesh, que, após ser ratificado, fortalecerá ainda mais os direitos das pessoas com incapacidades, as quais sofrem com as enormes barreiras que atrapalham seu acesso a materiais de leitura;.

Direito ao estudo

As repercussões sobre a queda do artigo 218 ainda geravam reflexos até que foram ofuscadas por outro acontecimento que pôs em questão a lei de direitos autorais: no mês de outubro, uma grande operação policial com oficiais da Interpol fez com que vários locais de fotocópia nas cercanias de estabelecimentos universitários fechassem suas portas. Tal operação incluiu a detenção de dezenas de pessoas pelo delito de comercializar fotocópias. Longe de terem contado com o apoio da população, os fatos ocorridos se transformaram em um escândalo que causou alvoroço ainda maior entre os estudantes, os quais se viram privados do acesso a materiais de estudo na época de suas provas. A Federação de Estudantes Universitários (FEUU) emitiu uma declaração contundente a favor do acesso livre ao conhecimento e, dias mais tarde, ocorreu a primeira manifestação no país em prol de uma reforma à lei de direitos autorais, a qual contou com um ato em via pública e com a apresentação de mais de 10.000 assinaturas em apoio.

Tudo isso culminou em um projeto para a modificação da lei de direitos autorais, recentemente encaminhado ao Parlamento. Por meio deste, buscam-se ampliar as exceções e as limitações educativas, bem como retirar a sanção penal às infrações sem fins lucrativos.

O papel da Universidade da República

Para além da discussão legislativa que hoje se faz presente, o tema também se tornou objeto de debate na Universidade da República (em espanhol, UdelaR, a universidade pública do Uruguai). Dentro da UdelaR, trabalha-se com Recursos Educacionais Abertos (REA) há meses.

Atualmente, estão sendo analisadas diferentes opções de ação para se solucionar o problema do acesso a materiais educativos, salientado por causa do fechamento das fotocopiadoras. A partir da Faculdade de Direito, investiga-se a possibilidade de se implementar um sistema de publicações livres. Nesse mesmo sentido, a UdelaR faz parte do Projeto LATIn, iniciativa latino-americana que promove a criação e a difusão de livros abertos e gratuitos. Paralelamente, formou-se um grupo de trabalho para a implementação de um repositório de acesso aberto para a produção acadêmica.

Futuro

As medidas contra o acesso e a circulação de cultura – o artigo 218 e a operação contra as fotocopiadoras – enfrentaram rejeição popular e geraram um efeito paradoxal que reforçou a consciência por uma agenda de direitos culturais a qual inclui o acesso universal ao conhecimento.

Em razão dos acontecimentos, o Ministério da Educação e Cultura (MEC) se comprometeu a promover a discussão social sobre o tema. No começo de novembro, foram organizadas as conferências cidadãs “Sumar” (em português, “Somar”), sobre direitos autorais e acesso à cultura. O debate foi bem sucedido em incluir, de forma equilibrada, as diversas visões sobre o tema. Como resultado das conferências, disponibilizou-se á sociedade uma grande quantidade de materiais, em formato escrito e audiovisual. Além disso, os informes das instituições e as conclusões do painel de cidadãos serão levados ao Parlamento e ao Poder Executivo.

Para completar o cenário, devemos salientar que, há mais de um ano, está pendente a sanção definitiva de um projeto de lei de software livre e formados abertos no Estado. A norma, que obriga que a Administração Pública outorgue prioridade a essas tecnologias frente às soluções privadas, conta com o apoio da sociedade civil, apesar de ter sofrido modificações e de ainda aguardar por sanção definitiva devido a pressões de setores empresariais vinculados ao software privado. No entanto, depois de um demorado e complexo processo legislativo, hoje é esperada a aprovação da lei.

2014 se apresenta como um ano de grandes desafios para os estudantes, para o Movimento Direito à Cultura e para a sociedade como um todo. As pressões das câmaras empresariais, das sociedades de gestão de direitos e das multinacionais do entretenimento para impedir maiores restrições são fortes, mas a potencialidade do conjunto da sociedade, que conta com diversos níveis de organização, é muito maior.

Esperamos, portanto, que o próximo ano nos permita construir as ferramentas sociais e legais para defender o domínio público e o acesso ao conhecimento e à cultura.