Acesso ao conhecimento em código de direitos humanos
by Digital Rights LAC on dezembro 19, 2014
O acesso ao conhecimento foi o tema da apresentação da Fundação Karisma na audiência temática feita perante a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) sobre o impacto da Internet na defesa e o exercício dos direitos humanos*
A audiência foi realizada em Washington, durante o 153º Período de Sessões, em 28 de outubro de 2014.
Por Carolina Botero**
O acesso ao conhecimento como um direito humano intimamente ligado à liberdade de expressão é um assunto complexo e amplo. Contudo, o foco da apresentação ficou em torno da tensão, acentuada com a massificação da Internet, entre o sistema legal do direito autoral e o direito das sociedades latino-americanas a acessar o conhecimento e à informação para garantir seu desenvolvimento social.
Esta tensão tem sua explicação nas potencialidades que as Tecnologias da Informação e as Comunicações (TIC) oferecem para o acesso, especialmente a Internet. As TIC diminuem os custos de criação, produção e distribuição de conteúdos e oferecem uma infraestrutura descentralizada, onde todos interagimos com esses conteúdos. Esta capacidade que, sem dúvida, é positiva, também tem sido vista como uma ameaça ao modelo legal de circulação oferecida pela lei de direitos autorais para os conteúdos.
Sob a ótica dos direitos humanos, esta tensão se manifesta em, pelo menos, 3 assuntos:
1. Pressões para que os Estados implementem legislações de proteção aos direitos autorais altamente desproporcionadas
Isto ocorre com os Tratados de Livre Comércio quando buscam transladar normas para o contexto local, que inclusive têm sido altamente questionadas em seus países de origem.
É o caso da “Saga da Lei Lleras” na Colômbia. Pela Lei Lleras conheceu-se uma série de propostas legislativas, que desde 2011 tiveram como motivação, o TLC com EUA. Seu denominador comum é a pressão que o país do norte exerce sobre o governo colombiano para o cumprimento dos compromissos adquiridos no Tratado. A primeira proposta, apresentada em 2011, buscava impor um mecanismo de exoneração de responsabilidade para os intermediários da Internet, conhecido nos EUA como “notice and takedown” (“notificação e retirada”, um mecanismo que os usuários do YouTube conhecem bem, pois serve para bloquear vídeos a pedido dos titulares). O sistema em questão consiste em um processo extrajudicial de bloqueio de conteúdos que deixa nas mãos dos intermediários privados, a decisão sobre o que deve estar ou não na Internet. Processos similares foram discutidos no México, Argentina e Peru, mas somente aceito no Chile com um modelo judicial com garantia.
Em todo caso, a pressão dos TLC em nossos países, garante que o assunto continuará sendo discutido até que seja dado cumprimento. Contudo, com uma tendência muito mais agressiva devemos mencionar o Acordo de Associação Transpacífico (TPP por sua sigla em inglês), que é negociada em segredo sem a participação da sociedade civil e no qual participam cinco países da América (Canadá, Estados Unidos, México, Peru e Chile). De acordo com os filtros conhecidos do texto, o TPP é um acordo comercial de última geração que é ainda mais agressivo, e uma vez aprovado, será imposto da forma, “pegar ou largar” para os demais países.
2. Uso do direito penal não como o último recurso, mas como ferramenta dissuasória para a proteção do direito autoral
Nos últimos anos vimos como se tem reformado o direito penal na região para ampliar as penas por infrações ao direito autoral. Também, em matéria de cumprimento do direito autoral, tem-se trabalhado para enfatizar na função de dissuasão do direito penal, deixando de lado que este sistema deve ser usado somente como último recurso. Em outras palavras, no penal temse buscado “bodes expiatórios”.
Isso pode ser exemplificado em dois casos:
– O caso do professor de filosofia Horacio Potel (Argentina), o qual desenvolveu e publicou um site gratuito de traduções de obras de 3 filósofos (Nietzche, Derrida e Heideger), com o objetivo de facilitar a seus alunos, o acesso a estes autores, que circulam em livros caros e em outros idiomas. Sua biblioteca digital não autorizada enfrentou a perseguição penal por parte da editoria de Derrida, que incluiu embargos e outras medidas judiciais. O caso finalmente foi encerrado com um fiscal, que acabou concluindo que não havia crime, pois as ações não tinham a dimensão para serem consideradas uma ação criminal.
– Atualmente, está o caso de Diego Gómez (Colômbia), que sendo estudante de biologia conheceu em um grupo fechado do Facebook, uma tese de mestrado sobre taxonomia. Para facilitar que outros estudantes tivessem acesso ao referido documento, a colocou sem fins lucrativos, em uma plataforma da Internet. Desde que soube que o autor e colega seu, havia iniciado uma ação penal contra você, passaram-se quase dois anos. Mas, espera-se que o caso de Diego Gómez, assim como ocorreu com o de Horacio Potel, seja desestimado em algum momento, pois sua ação não teve fins lucrativos, nem intenção de dano, o certo é que na Colômbia, a infração ao direito autoral pode significar para o Diego, até 8 anos de prisão e diversas multas.
Como vemos, o direito penal está sendo usado, desenvolvido para combater a pirataria, em casos que não são. Ou seja, o padrão internacional é que a infração ao direito autoral patrimonial supõe a intenção de causar dano, em uma escala comercial e com fins lucrativos.
Quando se amplia sua aplicação, desvirtua-se a legitimidade da pressão, que então se torna desproporcionada.
3. O uso abusivo das normas de direito autoral
A tensão entre os direitos autorais e os direitos humanos se evidencia especialmente, no caso das pessoas com deficiência visual (e de outros tipos), que há décadas vêm reclamando a igualdade no acesso ao conhecimento, informação e cultura. Esta população demonstrou que somente acessa 2% da produção intelectual (na Colômbia, isto é, 1 de cada 1000 livros). Com a tecnologia digital existe uma forma efetiva de transformar os livros a formatos acessíveis (usando, por exemplo, software que o torna audível), mas para que isso funcione as legislações nacionais devem garantir o acesso diante do monopólio do direito autoral.
Alguns países de América Latina (Chile, Equador, Colômbia) deram passos nesse caminho, mas a verdadeira mudança virá quando seja implementado o Tratado de Marrakech.
O Tratado de Marrakech, gestado no interior da ONU, na Organização Mundial da Propriedade Intelectual, supõe uma importante mudança, pois é a primeira vez que a comunidade internacional discute um documento obrigatório, não para aumentar os padrões de proteção do direito autoral, mas para garantir que estes não interfiram no direito fundamental das pessoas, neste caso, das pessoas com necessidades especiais para acessar o texto impresso (a negociação durou anos e foi finalizada em 2013).
Atualmente, 16 países da região assinaram, mas somente El Salvador, Uruguai e Paraguai, ratificaram. Antes de se ver um verdadeiro movimento para a efetiva adoção do Tratado, vemos que na Colômbia, por exemplo, apresentaram-se 3 ações por inconstitucionalidade contra a lei existente (a 1680 de 2013, que contempla disposições menores para este acesso, se considerada a abrangência do Tratado), nos últimos 4 meses. Os demandantes alegam que a lei viola o direito autoral com alguns argumentos que desconhecem os direitos destas comunidades e as disposições da própria lei, que buscam equilibrar as diversas proteções.
Este debate antecipa que haverá uma forte resistência ao Tratado de Marrakech, muito mais amplo em suas pretensões a favor das pessoas com necessidades especiais.
Estes são somente alguns dos exemplos que proporcionamos no anexo e que demonstram a necessidade de trabalhar em uma visão de direitos humanos na região que favoreça o acesso ao conhecimento e informação.
*A audiência foi solicitada por seis organizações da América Latina que trabalham assuntos de direitos humanos no ambiente digital, o Centro de Estudos em Liberdade de Expressão e Acesso à Informação(Argentina), a Fundação Karisma (Colômbia), ONG Direitos Digitais (Chile), a Associação para o Progresso das Comunicações, o Centro de Tecnologia e Sociedade da Fundação Getúlio Vargas (Brasil)
e a Associação pelos Direitos Civis (Argentina).
**Carolina Botero diretora do grupo “Direito, Internet e Sociedade” da Fundação Karisma.
E-mail: carobotero (at) gmail.com