Acesso à cultura e direitos autorais no Uruguai: #noal218, uma vitória da sociedade civil

by Digital Rights LAC on setembro 19, 2013

Large copyright graffiti sign on cream colored wall

No decurso de algumas poucas semanas, a lei de direitos autorais deixou de ser um tema desconhecido no Uruguai e passou a agitar a comunidade cultural, ocupando um importante lugar nos principais meios de comunicação.

Por Jorge Gemetto *

No início de julho, o governo uruguaio incluiu um artigo dentro do projeto de lei de prestação de contas (uma lei que trata majoritariamente de temas administrativos), que estendia o prazo de vigência dos direitos autorais de 50 a 70 anos depois da morte do autor. O artigo 218 (tal era o seu número dentro do projeto) foi incluído a pedido da Câmara Uruguaia de Produtores de Fonogramas (ou Câmara Uruguaia do Disco) em coordenação com a Associação Geral de Autores do Uruguai (AGADU), entidades que historicamente lideraram as reformas da lei de direitos autorais e que, nesse processo, conseguiram impor grandes restrições. Desta vez, e pela primeira vez, sofreram um revés político, produto da oposição enérgica de múltiplos setores da sociedade.

#noal218 (“Não ao 218”, em português) foi o nome dado à resposta de diversas organizações da sociedade civil formadas por estudantes, músicos, escritores, ilustradores, atores, editores, coletivos feministas, grupos de software livre e organizações internacionais de direitos humanos, as quais uniram suas forças para eliminar o artigo em questão e para evitar, tal como afirmaram em seu blog, a “privatização da cultura no Uruguai”.

As principais virtudes do movimento #noal218 foram a rapidez para iniciar a campanha, a articulação de diversos setores reconhecidos da militância social, a determinação para pedir audiências com os representantes políticos com o objetivo de lhes deixar clara a intenção do movimento, a capacidade de organização em rede e o bom uso da comunicação por meios digitais.

No momento de se avaliar o êxito do movimento, todos esses fatores tiveram o mesmo valor. Em vários meios de comunicação, destacou-se que o #noal218 se tratava de um fenômeno nas redes sociais. E, de fato, em parte foi. Sem dúvida, o manejo fluido da comunicação online por parte de ativistas mais jovens, conhecedores dos meios digitais, foi um traço marcante do movimento. Era impressionante a diferença de velocidade de comunicação do movimento, com discussões e debates que eram abertos em cada minuto nas redes sociais, em contraposição com o silêncio das entidades promotoras da medida, que se manifestavam somente diante do chamado da imprensa tradicional e que publicaram apenas um curto texto, na forma de comunicado, em um site da AGADU.

Da mesma maneira, a capacidade de organização em rede, com uma estrutura pouco hierárquica, baseada em vínculos de confiança e no trabalho em equipe, resultou em decisões rápidas que foram determinantes na hora de se alcançarem os objetivos. Evidentemente, há um fator geracional que determina essa diferença tão grande nas formas de comunicações e de organização, e que, nesse caso, favoreceu os ativistas pelo direito à cultura.

No entanto, seria um erro acreditar que a vitória do movimento #noal218 se deu unicamente nas redes sociais. Primeiramente, houve uma estratégia que incluiu os meios de imprensa tradicionais. Esses, acostumados a escutar sempre um só lado, se surpreenderam diante da presença de um novo ator social predisposto a romper com a voz hegemônica e para explicar pacientemente um conceito como o domínio público, pouco familiar para a opinião geral. A cobertura da imprensa não se destacou nem por sua precisão, nem por sua imparcialidade, mas ao menos deixou claro que existia um conflito, no qual os interesses em jogo não eram unicamente os das câmaras empresariais ou os das entidades de gestão de direitos, mas também os dos artistas independentes, os dos estudantes, os dos professores e os dos usuários de cultura em geral.

Além disso, o movimento optou por se aproximar dos representantes políticos, o que explica em boa medida o êxito da campanha. O governo não tinha uma posição unívoca em favor da extensão dos prazos dos direitos autorais, apesar de ter respondido a uma demanda concreta de um setor sem se informar acerca da oposição de outros setores à medida. O interessante é que quando os ativistas solicitaram reuniões com os funcionários do governo e tornaram pública a sua reivindicação, aqueles que, dentro do governo, tinham uma posição favorável à circulação social do conhecimento se surpreenderam. Vários funcionários admitiram a sua satisfação em encontrarem um novo interlocutor social, que lhes servia de respaldo para começarem a trilhar caminhos que antes não podiam empreender por falta de apoio social. Outros, que não tinham uma postura definida acerca do tema dos direitos autorais, manifestaram o seu agradecimento por receber uma nova visão sobre o tema, diferente das demandas históricas da AGADU e da Câmara Uruguaia do Disco.

Cabe destacar que as condições políticas no Uruguai para um movimento como o #noal218 são sensivelmente mais favoráveis que em outros países da América Latina. O Uruguai não participa do Acordo Trans-Pacífico e, portanto, não sofre com as pressões internacionais para endurecer sua lei de direitos autorais. Nesse contexto, a marcha pela extensão dos prazos não tem nenhum custo em nível de política internacional. Vale refletir acerca de como a situação seria diferença se o Uruguai decidisse se unir ao Acordo Trans-Pacífico ou se o tratado de livre comércio com a União Europeia prosperasse. Para o movimento de cultura livre, essas são ameaças possíveis a se levar em conta na hora de se pensar o futuro.

Como já foi dito, a extensão dos prazos de vigência dos direitos autorais foi derrotada. Apesar disso, o movimento #noal218 não enxergou a vitória como um fim em si mesmo, mas sim como um início para uma agenda positiva no que tange ao acesso à cultura e aos direitos autorais. A lei de direitos autorais uruguaia é extremamente restritiva, penaliza práticas cotidianas socialmente aceitas e entra em conflito direto com o direito de estudar e de ter acesso à cultura. Por tal razão, desde a nova plataforma, foi impulsionada uma reforma da lei de direitos autorais que reconheça as práticas culturais derivadas do uso de novas tecnologias, que proteja realmente os autores e que fomente a cultura livre. O governo uruguaio se comprometeu a gerar o marco para que, nos próximos meses, este seja debatido institucionalmente, com a maior parte das vozes envolvidas na questão devidamente representadas. É esperado que dessa instância saiam as recomendações para que o parlamento dê início ao processo legislativo que garanta o direito à cultura.

* Jorge Gemetto é codiretor de “Ártica”, Centro Cultural Online (Uruguai)

www.articaonline.com / Twitter: @Jorgemet