Uma discussão que pode mudar os direitos autorais no Peru

by Digital Rights LAC on abril 2, 2014

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No último capítulo de uma longa polêmica, o Instituto Nacional de Defesa da Competência e da Proteção da Propriedade Intelectual suspendeu por um ano o conselho administrativo da Associação Peruana de Autores e Compositores.

Mas o que virá depois desta longa discussão em um país como o Peru, que continua promovendo firmemente o desenvolvimento econômico e cultural? Talvez uma mudança radical.

De Miguel Morachimo*

Em outubro de 2013, foi feita uma investigação jornalística para tentar retratar a opinião pública sobre a forma em que estão desenhados e se fazem cumprir os direitos autorais no Peru. Suas revelações motivaram audiências no Congresso, a decisão estatal de suspender os diretores de uma sociedade de administração coletiva, a designação, depois de anos, de um novo diretor para o Gabinete de Direitos Autorais e até treze projetos de lei que visam modificar as partes mais controversas da lei. Será esta uma autêntica mudança de ciclo para o direito autoral no Peru ou será simplesmente um fenômeno passageiro?

Mesmo que a reportagem de Marco Sifuentes e Jonathan Castro sobre as questionáveis operações da Associação Peruana de Autores e Compositores (APDAYC) não tenha sido a primeira em falar do tema, foi a que mais atenção atraiu nos últimos anos.

Os factos em questão cobriam, de forma extrema, os vários conflitos de interesse que vinculavam os diretores da APDAYC com rádios, empresas discográficas, produtoras e um pequeno grupo de artistas. Mas também se davam conta de um profundo descontento social com respeito a certas regras que existem na nossa legislação e que permitem que sociedades de administração coletiva cobrem pelo uso de música em casamentos, atividades sem fim lucrativo, pequenos negócios como cabelereiros ou bares e o fazem inclusive com obras e artistas que não são parte do seu catálogo direta ou indiretamente.

Ao longo destas semanas, multiplicaram-se as histórias que recolhiam confusões de artistas, empresários, autoridades e usuários da APDAYC. Rapidamente, e apesar das tentativas de justificação pelos seus diretores, ficou gravado na retina dos peruanos que algo não estava certo com a APDAYC e que era necessário fazer algo.

A autoridade nacional responsável pela supervisão das sociedades de administração coletiva é o Instituto Nacional de Defesa da Competência e Propriedade Intelectual (Indecopi). Esta instância administrativa foi criada durante a década de noventa com a finalidade de especializar e descongestionar a aplicação de leis em aspectos chave do comércio como a propriedade intelectual, a competência e a proteção do consumidor entre outros. Ainda que a Indecopi tenha o poder de iniciar casos de ofício e de emitir sanções, as suas decisões podem ser finalmente revisadas pelo judicial, e com certa frequência o são.

Durante os últimos anos, seu departamento de Direitos Autorais acumulou várias investigações e até sanções contra a APDAYC, mas conseguiram mudar pouco as coisas. No começo de março, a prova de que a APDAYC estava aplicando regras questionáveis para a medição de popularidade e distribuição de lucros entre seus sócios persuadiu a Comissão de Direitos Autorais da Indecopi a ordenar a suspensão temporária dos atuais diretores da empresa. Em resposta a APDAYC classificou a decisão como “abusiva e ilegal”, anunciou que estavam dispostos a esgotar todos os recursos judiciais possíveis e que já avia entrado com um recurso que deixou a decisão suspensa.

Em paralelo, foram realizadas audiências especiais nas Comissões de Cultura, Fiscaliazção e Proteção do Consumidor do Congresso. Consequentemente, existem hoje treze projetos de lei pendentes de discussão que visam mudar pontos diferentes do Decreto Legislativo 822, lei sobre o direito autoral no Peru. Alguns destes projetos de lei se propõem a mudar regras específicas sobre o funcionamento das sociedades de administração coletiva, com base nos fatos denunciados nos últimos meses sobre a APDAYC. Assim, se buscam mudanças à forma de eleição do seu conselho de diretores, a proibição da sua reeleição, incompatibilidades por conflitos de interesse direitos e indiretos e a obrigação de demonstrar de forma confiável a representação das obras pelas quais ela cobra.

Mas também há propostas para uma reforma mais profunda. Se propõem novas exceções e limitações para usos domésticos, atividades sem fins lucrativos, bibliotecas, atividades religiosas e pequenos negócios. A nossa lei de direitos autorais, publicada em 1996, mudou muito poucas vezes e quase sempre em prol de um sistema mais rígido e maximalista. Pela primeira vez em dezoito anos, existem vários projetos de lei que buscar colocar os direitos dos usuários no mesmo nível que os direitos dos autores. Independentemente do resultado, a mera discussão destes assuntos é necessária e bem-vinda em um pais que está vivendo um momento de decolagem em tantos espaços culturais e está ansioso por melhores condições para o acesso à cultura e ao conhecimento.

O melhor que pode acontecer após o escândalo da APDAYC não é a renúncia dos seus diretores ou a desarticulação da sociedade de administração coletiva. Sem prejuízo às responsabilidades individuais existentes, talvez o melhor que possa acontecer seja que a APDAYC nos sirva de desculpa para ter uma conversa que, como país, temos deixado pendente. Um estado que busca construir sua política cultural e promover o respeito pela propriedade intelectual não pode se dar ao luxo de fechar os olhos para a sua realidade, que se resume a pequenas coisas como o fato que o maior centro de varejo de cópias ilegais do país (Pós Azuis) fica a poucas quadras da Suprema Corte.

O Peru precisa identificar os problemas atuais do seu sistema de direitos autorais e discutir possíveis soluções. É um debate que muito poucas vezes fazemos em voz alta e, no entanto, com frequência agimos como se tudo estivesse muito claro, em espaços de negociação secreta como o Acordo Trans Pacífico (TPP) onde o Peru está assumindo obrigações que pesarão tanto quanto ou mais que uma lei do Congresso.

Intervir na APDAYC é necessário, como também é necessário que as autoridades se encarreguem de assegurar o cumprimento das leis. Contudo, intervir no sistema de direitos autorais no Peru é urgente para que não continue havendo casos como o da APDAYC, para construir uma cultura de cumprimento sustentada por regras claras e coerentes, e para manter o equilíbrio entre a remuneração justa para os criadores e o direito humano ao acesso à cultura e ao conhecimento.

*Miguel Morrachimo é diretor da Hiperderecho.

miguel@hiperderecho.org